sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A era da barbárie

Os antecedentes da tormenta no 'Charlie Hebdo': 
Europa tem hoje 8 milhões de imigrantes sem papeis; 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados. 
Após seis anos de arrocho neoliberal, a rejeição ao outro criou o medo da 'islamização', alimentou a extrema direta e liberou a demência terrorista.

Fonte: CARTA MAIOR
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A saúde, a saúva e a virtude

Por Saul Leblon, no site Carta Maior:

Nenhuma outra corporação profissional se destacou tanto na guerra aberta à reeleição da Presidente Dilma quando a do jaleco branco.

O pleito foi o ápice de uma espiral de colisões iniciada em 2013, quando as entidades médicas alinharam-se ao conservadorismo mais feroz na oposição ao programa ‘Mais Médicos’.

Classificada como uma fraude, a iniciativa federal de levar cerca de 5,5 mil profissionais cubanos a rincões não cogitados por médicos brasileiros mereceu do Cremesp, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, a seguinte nota, em maio de 2014: ‘Tomaremos iniciativas políticas e eventuais medidas judiciais para impedir essa afronta à saúde da população e à dignidade da medicina brasileira’.

Em outubro, dez dias antes do pleito, a Associação Médica Brasileira (ABM) lançaria um manifesto conclamando os associados a eleger Aécio.

‘Urge mudarmos estas mazelas e descasos, frutos de um ideário político-partidário que nunca teve, na sua essência, a legítima e real preocupação com a saúde no Brasil (...) precisamos retirar do poder aqueles que não se preocuparam com os anseios e necessidades da população, em prol da saúde brasileira. Conclamamos todos a votar em Aécio Neves’, finalizava a nota.

Passados pouco mais de dois meses, uma reportagem do Fantástico, veiculada pela Globo, no último domingo, mostrou bastidores de um, aí sim, gigantesco esquema de mazelas; um assalto aos cofres do SUS, o Sistema Único de Saúde, que carrega no nome a promessa de uma equidade ainda distante.

Os protagonistas dessa sucção ‘não se preocuparam’ - para emprestar os termos da Associação Médica Brasileira - ‘com os anseios e necessidades da população, em prol da saúde brasileira’.

Não há leviandade em cogitar - aliás existem evidências - de que muitos deles atenderam ao apelo cívico-eleitoral lançado pela associação de classe, em outubro passado.

A expressão ‘máfia da prótese’ chega à suave no caso.

Ela condensa a ação de uma quadrilha integrada por profissionais da medicina, advogados e fornecedores de próteses.

A mecânica do golpe, que pode envolver dezenas de milhões de reais, apoia-se em uma triangulação.

O paciente que espera pelo implante na fila do SUS - de cuja receita foram decepados R$ 40 bilhões por ano com a extinção da CPMF, em 2006, sem protesto da AMB -, é orientado por médicos que fazem a ponte com advogados e escritórios encarregados de processar o governo.

A engrenagem se move para exigir o pagamento da prótese e da cirurgia feita em regime privado.

Invariavelmente, a conta apresentada ao SUS é dezenas, às vezes milhares de vezes, superfaturada.

Tornar o assalto excepcionalmente lucrativo é um requisito de sobrevivência da cadeia alimentar.

Pra isso, médicos, advogados e indústria fazem gato e sapato no percurso entre o diagnóstico verdadeiro, a versão cobrada do SUS e aquilo que, de fato, é executado na sala de cirurgia.

Ainda não há números redondos do cambalacho.

Mas há evidências.

Um levantamento do governo constatou que em apenas seis anos, entre 2005 a 2011, os gastos do SUS com o cumprimento de sentenças judiciais cresceram 100 vezes no Brasil.

Passaram de R$ 2,5 milhões para R$ 266 milhões em 2011.

Só em 2013, mais de R$ 1,2 bilhão foram pagos em despesas com próteses em geral.

O valor é o dobro do gasto com o execrado ‘Mais Médicos’ no mesmo período.

E não fica tão abaixo do auge atingido pelo orçamento do programa, que no ano passado atingiu R$ 1,9 bilhão.

As diferenças de custo/benefício é que são expressivas.

O recurso investido predominantemente na contratação de médicos cubanos viabiliza hoje o atendimento de 50 milhões de brasileiros antes desassistidos.

Em contrapartida, mais de 80% dos gastos com implantes de próteses feitos em 2013, nos 60 maiores hospitais privados do país, destinaram-se ao circuito da fraude que vai da prescrição à venda, muitas vezes desnecessária, desses produtos.

Outra diferença não menos notável: a indignação ‘ética’ das entidades de classe contra a parceria com ‘cubanos’ não se repetiu no presente escândalo.

A negligencia, infelizmente, talvez encerre algo mais que o mero descuido.

E esse é o ponto a reter.

A recorrência dos escândalos médicos e o seu baixo impacto corporativo, comparado à animosidade engajada contra o ‘Mais Médicos’, evidencia a existência de profundas distorções no ambiente médico do país.

Desde a formação do estudante, passando pela cultura da profissão e a ênfase das representações de classe, o profissional brasileiro enxerga-se cada vez mais como um apêndice do mercado e dos interesses da indústria, e cada vez menos como um sujeito comprometido com a dignidade da saúde pública.

Decorre daí uma certa elasticidade ética.

Ela torna o juramento de Hipócrates por estas plagas cada vez mais complacente com o intercurso entre o consultório, a indústria da saúde, o receituário e o lucro a qualquer preço.

Em contrapartida, mostra-se cada vez menos permeável à natureza social de programas e agendas como o ‘Mais Médicos’.

E de seu corolário: a luta pelo financiamento de um sistema único de saúde digno e eficiente em todo o país (leia análise do ex-ministro Alexandre Padilha sobre as opções ao sub-financiamento do sistema público de saúde brasileiro).

A reportagem do Fantástico mostrou que o intercurso entre um médico e o esquema da máfia das próteses poderia render até R$ 100 mil ao profissional.

Não é um ponto fora da curva.

Cruzeiros, resorts e passeios ao exterior com os quais os médicos campeões em receitar determinados medicamentos são brindados pelos fabricantes não ficam muito atrás nessa gincana de cifrões que intoxica toda a área da saúde.

Nos EUA, as gigantes do setor farmacêutico gastam cerca de US$ 58 bilhões em marketing (o dado, subestimado, é de 2004).

Quase 90% desse total ruma diretamente para o bolso de quem tem o poder de prescrever medicamentos.

É uma espécie de captura da prerrogativa médica pelo mercado.

Mas esse sequestro ético parece mais palatável às entidades de classe brasileira, que o desembarque solidário de doutores cubanos no país.

A interatividade entre o jaleco e o lucro corporativo chegou a tal ponto que uma legislação mitigatória entrou em vigor nos EUA, no ano passado.

Ela obriga empresas farmacêuticas a relacionar em um site oficial os médicos que aceitaram pagamentos ou presentes de valor superior a US$ 10, bem como as quantidades exatas pagas a cada um e a sua alegada finalidade.

Eis uma boa ferramenta ética que a operosa Associação Médica Brasileira poderia abraçar.

Na verdade, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), já fizeram uma tentativa nesse sentido.

Brindes e presentes, por exemplo, deveriam estar relacionados à prática médica efetiva; seu valor não poderia exceder a um terço do salário mínimo em vigor no país.

Como explicar, então, a persistente e generosa lubrificação de dermatologistas, por exemplo, com cataratas de viagens, cruzeiros e outros mimos de custo dezenas de vezes mais elevado?

Existem outras normas supostamente em vigor, com efeitos prático idênticos.

Um artigo no novo Código de Ética Médica, uma resolução da Anvisa e um "código de condutas" da associação das indústrias buscam coibir a simbiose entre a saúde e a saúva.

Por que, então, a correição persiste?

Sem a transparência pública e a penalização determinada pelo Estado, a conveniência entre o lucro e o bolso parece dar força ao sauveiro.

Recentemente, a indústria farmacêutica norte-americana foi proibida de promover palestras em um dos maiores congressos médicos do mundo, o da American Heart Association.

A decisão partiu de um órgão do sistema nacional de saúde dos EUA (INH), que credencia cursos de educação continuada.

No Brasil, calcula-se que mais de 60% dos cursos livres e congressos médicos são bancados pela indústria farmacêutica e de equipamentos.

Sem isso, alegam entidades médicas, o evento seria inviável.

Uma pergunta: qual é, afinal, a grande diferença entre médicos e/ou entidades bancados por uma grande farmacêutica, e políticos e/ou partidos sustentados por uma empreiteira?

Há aí uma cultura precisa ser quebrada.

E ela está arraigada no ambiente médico.

Pesquisa feita pelo Datafolha em 2010, em parceria com o Cremesp, ouviu 600 médicos em um universo de mais de 100 mil profissionais em atividade então no Estado de São Paulo.

Não há razões para supor que o quadro evoluiu para melhor.

Desse total, 80% admitiram receber, em média, oito visitas de propagandistas de medicamentos por mês.

Pior: 93% afirmaram ter recebido, nos últimos 12 meses, produtos, benefícios ou pequenos pagamentos da indústria.

Quase 40% admitiram ter recebido presentes de maior valor, desde cursos a viagens para ‘congressos internacionais’.

Quase metade, 48%, afirmou receitar o que o fabricante indica.

E o escárnio supremo: há indícios de que a fidelidade desse matrimônio é vigiada pelo dono do dinheiro.

Em 2005, uma reportagem da ‘Folha de São Paulo’ revelou que, em troca de brindes ou dinheiro, farmácias e drogarias brasileiras auxiliavam a indústria de remédios a vigiar as receitas prescritas por médicos.

Com acesso ao receituário, representantes dos laboratórios pressionavam os profissionais a indicar seus produtos e os recompensavam por isso.

A marcação corpo a corpo se inspira em valores elevados.

O Brasil é um dos maiores mercados farmacêuticos do mundo, crescendo a taxas chinesas de 10%, em média, nos últimos anos.

Com a elevação da renda e do salário mínimo, 54% da população consome medicamentos regularmente.

O faturamento do setor em 2013 foi de R$ 55 bilhões.

É muito dinheiro em uma área vital para que seja manejado sem a salvaguarda do interesse coletivo.

Não se trata de duvidar do caráter do médico brasileiro.

Entre a saúde e a saúva, a chance da virtude está nas instituições, não nas metas de lucro corporativo ou na fraqueza humana diante de cruzeiros gratuitos pela Europa e o Caribe.

Há que ser duro, sem perder a ternura, disse um precursor dos cubanos do Mais Médicos.

A verdade é que a medicina praticada hoje no Brasil repousa, predominantemente, nas mãos de uma classe média desprovida de discernimento sobre o país, sobre o mundo que a cerca e as urgências da sociedade que lhe custeou o estudo.

Daí a naturalidade com que se endossa – com dignas exceções - a sabotagem à assistência emergencial do Mais Médicos; e a cara de paisagem exibida diante de um escândalo como o da máfia da prótese.

Pior que isso.

Entre indignado e estupefato, o conservadorismo de jaleco branco recusa a possibilidade da existência de outra referência de exercício da medicina que não a dos valores argentários.

Solidariedade, internacionalismo e fraternidade formam uma constelação incompreensível a quem divide o mundo entre consumidores e escravos.

Felizmente, nem os médicos do Caribe nascem bonzinhos, nem a mentalidade da máfia da prótese se reproduz por geração espontânea.

Ambos são fruto de instituições. A ponto de um não achar estranho sair de seu país para ajudar uma outra nação.

E o outro não hesitar em sangrar recursos públicos escassos de sua própria nação, que podem fazer a diferença entre a vida e a morte na fila da saúde pública.

Esse talvez seja o aspecto mais chocante do escândalo médico da vez.

E, sobretudo, o mais instrutivo, para quem quiser enxergar a real abrangência dos desafios financeiros e educacionais que ele propõe.

A ver.


Fonte: Blog do Miro
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Certamente o céu não estava todo azul quando o raio caiu.

A medida que o impacto inicial  do atentado em Paris vai dando lugar a reflexão, pode-se entender que nada acontece por acaso e, que os fanatismos e fundamentalismos, independentes do lado em que existam , dominam a cena mundial.

Que a globalização neoliberal  com sua sanha destruidora, seu consumismo irracional, e sua lógica de que tudo é mercadoria, está levando o mundo à idade das trevas é uma realidade.

O atentado de Paris deveria servir de reflexão para compreender-se que o neoliberalismo e sua globalização suicida fracassaram.

No entanto o que se vê  como resposta no mundo ocidental, é uma radicalização ainda maior no campo da direita, com a ascensão principalmente na Europa de partidos fascistas.

Grita-se em nome da liberdade,  porém se adere ao fascismo.

Focar apenas a discussão sobre o atentado como uma violência a liberdade imprensa, serve de estratagema para alguns veículos de imprensa continuarem alinhados com o fascismo crescente que apóiam , não apenas  no Brasil, como em todo o mundo.
 Snowden e Assange continuam "presos", perseguidos, por terem levado a sério a liberdade de expressão.

Não seguiram o roteiro do teatro mundial.

Enquanto isso, aqui no Brasil como provavelmente no mundo neoliberal, uma máfia vende próteses de pernas, braços e sabe lá o que mais, para aumentar seus lucros, fazer grandes cruzeiros, adquirir o carro do ano, ou seja, surfar  a qualquer custo nos valores do neoliberalismo.

Da série de contos do PAPIRO intitulada Diários de Botequim, vale a leitura abaixo do conto publicado neste blogue em 14.08.2013 com o título Dr. Célio e a Primavera Talibã.

O assunto é bem atual.




Dr. Célio e Primavera Talibã


No final daquele mês de setembro o assunto não poderia ser outro.

Em todos os cantos e centros da cidade uma nova palavra era incorporada no vocabulário do carioca.

De sanduíches a calcinhas, tudo era talibã.

Teses e mais teses proliferavam pela cidade na tentativa de compreender o atentado contra as torres gêmeas nos EUA.

- acabou de sair uma calabresa acebolada que está talibã, vai ? peguntou Olsen para um freguês do bar.

No bar, a realidade não era diferente.

Em todas as mesas, em que se podia ouvir , o assunto era o atentado e, principalmente, a ousadia desses novos personagens, os talibãs.

- não tira onda comigo não que eu sou talibã, disse um vendedor de rua para um guarda municipal que o perseguia nas imediações do boteco.

Na mesa estavam Miltão, Jadir ,Nelsinho e uma figura estranha, apresentada aos demais por Nelsinho como um tal de Dr. Célio.

O tal Doutor era de fato muito estranho.

De estatura mediana, e com uma aparência de meia idade consolidada, tinha uma face clara, com uma cor pálida e cadavérica, um bigode grisalho com marcas acentuadas de nicotina que também eram bem fortes nos dedos de suas mãos .

Durante o período que ali esteve, e que não foi de muito tempo, fumava um cigarro quase que atrás do outro, além de demonstrar muita intimidade com o copo, já que consumiu algumas caipirinhas.

Suas mãos eram trêmulas, porém quando se expressava era raro movimentar algum músculo da face.

Por vezes lembrava um robô ou um andróide falando.

Certamente não teve a empatia de Miltão e Jadir, que tão logo após a saída do Doutor do bar, interpelaram Nelsinho.

- porra, Nelsinho. Que cara esquisito esse conhecido seu, comentou Miltão.

- esquisito é pouco, disse jadir.

- como é que você conheceu esse cara, perguntou Miltão.

- ihhh rapaz, esse cara é pra lá de estranho e ainda dou o azar de encontrar com ele por aí.

- como assim, perguntou Jadir e continuou. Conta esse negócio direito, ô anta
.
- vou contar, disse Nelsinho.

- pera aí, gritou Miltão e ao mesmo tempo segurou o braço de Olsen que passava ao lado, ordenando-lhe que limpasse a mesa no lugar onde o doutor estava sentado, já que além de estranho o doutor deixou uma sujeira considerável no local.

- limpa aquela porra ali, disse Miltão para Olsen que de imediato deixou o lugar habitável.

- vai ô anta, conta aí, disse miltão para Nelsinho.

- lembra do acidente de carro em que me envolvi há mais ou menos três meses , peguntou Nelsinho

- aquele em que você fez uma merda danada e ainda bateu em dois carros ?

- não fiz merda nenhuma, a culpa não foi minha, disse Nelsinho demonstrando irritação.

- Porra Jadir, pára de perturbar o cara e deixa ele contar, entrou de sola Miltão.

- então, depois do acidente eu fui parar na delegacia com os demais envolvidos.

Quando cheguei na delegacia , aquilo estava a maior zona, tinha gente pra caralho lá dentro e demorei um tempo para que o meu caso fosse atendido.

Um policial pediu para que nós esperássemos , pois o dia estava movimentado.

Fiquei sentado, num banco, aguardando o momento de ser chamado e, ao meu lado estava o tal Doutor também esperando para ser atendido.

Ele começou a puxar conversa comigo querendo saber o motivo de eu estar ali.

Notei que ele estava bastante deprimido naquele momento e também perguntei o quê fazia ali. 

Tão logo eu perguntei, o  cara ficou ainda mais deprimido, abaixou a cabeça, os lábios ficaram trêmulos e falou que tinha enfiado a porrada na mulher dele, a ponto da mulher ir parar no hospital.

Notei que o cara tinha ficado pior e fiquei com pena dizendo pra ele que casos de traição acontecem, imaginando que ele tivesse sido traído pela mulher.

Foi aí que ele, já quase que chorando disse que não tinha sido traição.

Logo em seguida ele colocou a mão no meu ombro, começou a chorar e disse que bateu na mulher porque ela o chamou de feio.

- ihhhhhhhhhhh, interrompeu Jadir. Seu feioso, ai, ai. Isso parece coisa de viado.

- colocou a mão no teu ombro ou fez carinho na nuca, perguntou Jadir

Nelsinho riu e continuou.

Então! O cara desabou e começou a chorar.

Achei aquilo estranho mas depois disso ele ficou quieto e eu não dei mais conversa, até que fui chamado pelo delegado , resolvi o caso, e não vi mais o cara.

Aí, uma semana depois disso, eu fui ao Fórum para audiência do meu divórcio.

Aquele foi um dia terrível pra mim, porque pela manhã, antes de ir ao Fórum, passei  numa loja pra fazer um crediário e comprar uns eletrodomésticos lá pra casa e , pra minha surpresa , não pude abrir o crediário porque meu nome estava na lista do SPC e do SERASA.
  
Depois da pesquisa , fui informado que devia-se ao fato de não ter efetuado o pagamento de um cartão de crédito.

De fato, como tenho muitos cartões, acabei me enrolando na papelada lá em casa e esqueci de efetuar o pagamento de um deles.

Aquilo me deixou chateado naquele dia.

- isso é uma anta, disse Jadir. Esquece de pagar as contas.

- então! Quando cheguei lá no Fórum, fiquei esperando pra ser chamado  quando pra minha surpresa, aparece na minha frente esse doutor, todo de branco, perguntando se tinha resolvido tudo lá na delegacia.

Olhei pro cara e reconheci a figura, que naquele momento aparentava estar bem e seguro.

Ele notou que eu estava chateado e perguntou o que fazia ali.

Falei da audiência mas disse que o motivo de minha chateação era outro.

Foi quando ele me pegou pelo braço, me levou para um lugar onde ninguém ouvia a nossa conversa e falou que caso eu desejasse ele poderia retirar meu nome do SPC e do SERASA naquele momento, por apenas 25 reais.

Achei aquilo estranho e perguntei como ele fazia isso. 
Ele explicou que lá no Fórum tem um esquema de um pessoal que entra nos sites do SPC e SERASA, retira o nome da pessoa da lista suja para que ela possa fazer o crediário, mas que depois de uma semana o nome volta pra lista, quando a pessoa já efetuou o crediário e já recebeu os produtos em casa.

- ihhhh rapaz, além de estranho o cara é trambiqueiro, disse Jadir.

Você ainda não ouviu nada , disse Nelsinho e continuou.

Falei com ele que não era necessário, pois o meu caso foi de esquecimento e que iria efetuar o pagamento naquele dia, logo apos a audiência.

Depois disso fiquei sabendo que ele era médico, pois ele explicou que estava ali cuidando de um caso onde ele atuou como perito médico em um caso de assassinato.

Ele contou que o juiz do caso estava ganhando propina para aliviar o assassino , mas que não estava distribuindo a propina para mais ninguém e, que por isso, ele elaborou um laudo só com termos médicos  que até médicos tem dificuldade de entender.

Contou isso rindo.

Disse ainda que o juiz quando recebeu o laudo saiu correndo atrás dele pra ele escrever um laudo sem aqueles termos e, foi aí que ele negociou com o Juiz a propina que ele iria receber.

Depois disso me desliguei do cara e fui para audiência.

Pro meu azar, quando saía do Fórum, encontro novamente com o cara na saía.

Ele estava com um bafo de cana terrível, me segurou pelo braço e perguntou para onde eu estava indo.

Pro meu azar ele ia pro mesmo lugar e ainda me ofereceu carona no carro dele.

Quando chegamos no estacionamento, levei um susto com o carro do cara.

Uma BMW, último tipo do ano, isso para um médico funcionário público.

- o cara deve ser cheio de esquemas, disse Miltão já com o nariz vermelho.

Entrei no carro  e confesso que fiquei preocupado , pois o cara já estava bêbado.

Quando colocamos os cintos de segurança , o cara puxou uma bolsa e disse que ia mostrar um negócio pra mim.

Vocês nem podem imaginar o que aconteceu.

O cara abriu a bolsa e puxou  pelos cabelos uma cabeça de homem, branco, de mais ou menos quarenta anos.

Levei um susto filho da puta e cheguei mesmo a gritar ao ver uma cabeça, com os olhos arregalados e a boca aberta.

Me deu vontade de vomitar até sair do carro , enquanto o cara ria. 

Peguntei o que ele ia fazer com aquilo e se ele não tinha medo de ser abordado pela polícia com uma cabeça numa bolsa.

Ele disse que como médico sempre tem uma boa desculpa , caso os policias o abordem na rua. 

Se a desculpa médica não colar, ele disse que a propina rola.

Explicou que estava levando   a cabeça para enviar pelo correio para a casa de um sujeito que estava perseguindo um amigo dele no trabalho , e que aquilo era tipo uma ameacinha para o cara que estava perseguindo o amigo dele.

- porra, Nelsinho. Esse cara é barra pesada, disse Miltão.

-E tem muito mais, disse Nelsinho e continuou.

Pedi pra guardar a cabeça enquanto ele explicava os motivos .

Saímos dali e fomos pra Copacabana, onde ambos tinham seus destinos.

No percurso, o cara ainda me perguntou se eu tinha resolvido tudo certo no acidente em que me envolvi, pois caso meu carro tivesse sido muio avariado , e se eu tivesse seguro, ele tinha um esquema de desmanche pra carro.

Disse que  como eu tinha dado entrada na delegacia o esquema não valia pra mim.

Falou que em caso de acidente de carro, com perda quase que total do carro, o melhor é não registrar na delegacia, desmanchar o carro todo, e entrar no seguro como se o carro tivesse sido roubado, de preferência em um dia de jogo no Maracanã, onde estaria estacionado.

- porra ô anta, esse cara é bandido.

- bandido é pouco, o pior você vai ouvir agora, disse Nelsinho e continuou
.
 Quando chegamos em Copacabana, o cara me agarrou e levou para uma bar.

Como tinha tempo acabei aceitando.

Começou a encher a cara pesado e me contou que na profissão dele, na justiça, ou mesmo no hospital público ou privado, ele faz o que bem entende.

Ele disse que faz o diagnóstico que bem entender, caso esteja em jogo uma propina.

Falou que as melhores propinas são de retiradas de rins, de pessoas saudáveis, ingênuas, de pouca instrução que usam o SUS. 

Se as pessoas não questionam, e a maioria é ingênua não questiona, ele dá o diagnóstico de um rim comprometido, diz que tem que operar e retira o rim para o negócio, enquanto a pessoa vai viver com apenas um rim, sem saber que foi parte de um esquema

Disse também que para aliviar o hospital, eles praticam eutanásia, por conta própria em muitos pacientes em estado terminal, isso para desocupar leitos , até mesmo em clínicas e hospitais particulares, dependendo do interesse envolvido.

Contou, também, que estava fazendo hora ali, pois iria visitar uma paciente dele, de trinta anos, diagnosticada com um câncer e que tinha dado a ela  mais três meses de vida.

Disse que como a mulher é bonita e gostosa, iria aproveitar a fragilidade dela pra tentar dar uma trepada com ela naquele dia.

E também falou que tem com hobby colecionar carrinhos de brinquedo.

- porra! Isso não é só bandido , é um filho da puta, psicopata, uma cara perigoso.

Com é que você põe uma porra dessa aqui na mesa, Nelsinho, perguntou Miltão .

- isso é uma anta, disse Jadir.

- eu não coloquei ninguém aqui.

Vocês viram que ele estava no bar e me reconheceu e foi sentando na mesa, disse Nelsinho.

- um bandidaço, que ainda por cima tem um mau hálito filho da puta.

Olha que eu estava até um pouco distante dele aqui na mesa e mesmo assim senti um fedor do cacete quando ele falava, disse Jadir e continuou.

Imagine a medicina.

Isso é um perigo a gente sair por aí entregando a nossa saúde para que esses caras digam o que fazer.

- pera ai, disse Miltão já não apenas com o nariz vermelho mas com todo o rosto vermelho. 

Esse cara não é a regra.

Ele não representa a  maioria dos médicos, que são corretos e dedicados com os pacientes.

Ele é bandido.
E bandido tem em tudo que é lugar, até mesmo no Vaticano, onde Deus é citado todos os dias.

Entretanto, com o crescimento dessa lógica de que tudo no mundo é mercadoria, concordo com o Jadir que a tendência é que figuras  e práticas como essa cresçam cada vez mais.

Nessa lógica, seja na medicina, nas relações interpessoais, na segurança pública, ou seja, em todas as esferas da vida, o que vem ganhando espaço é a tirania e a barbárie.

Isso é perigoso.

Presta atenção sua anta, disse Miltão apontando o dedo para Nelsinho. 

Se essa porra sentar de novo aqui  na mesa eu vou expulsar esse cara daqui.

Depois das palavras de Miltão fez-se um silêncio na mesa.

Todos demonstravam, ou tentavam demonstrar que estavam ocupados com alguma coisa, ora bebendo um gole da bebida da mesa, ora, verificando alguma coisa nos bolsos, ou mesmo olhando para os lados.

O silêncio persistia, e junto com ele uma sensação de repulsa, até mesmo de nojo, por ter convivido , mesmo que por alguns instantes, com uma pessoa tão asquerosa.

O hospital que existe em frente ao bar contribuía para um clima nada agradável, sempre que os olhos para ele se moviam.

Olsen se aproximou  e informou sugerindo  que acabara de sair, fresquinha e quentinha, uma isca de fígado acebolada que estava talibã.

Os olhos de todos na mesa se cruzaram, certamente lembrando de rins e  cabeças

Miltão agradeceu e rejeitou a sugestão.
  
Para piorar o silêncio, uma ambulância, em frente ao bar, pedia passagem com a sirene ligada. 

Já era demais.

Foi o estopim para que me despedisse de todos , na primavera talibã.

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