quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Os escravos do século XXI

Jorge Souto Maior ao presidente do TSE: 
Não cumprir as leis trabalhistas é “bom negócio” para patrões

03 de novembro de 2016 às 11h14

Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, se reuniu com o presidente do TST, Ives Gandra Martins Filho, para tratar da PEC 241. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil, via Fotos Públicas


por Jorge Luiz Souto Maior -  juiz do Trabalho e professor da Faculdade de Direito da USP

O Presidente do TST, Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho, parecendo cumprir uma missão, voltou a se expressar de forma pejorativa com relação à Justiça do Trabalho, aos juízes do trabalho e aos direitos trabalhistas na grande mídia, onde, afinal, sempre teve bastante espaço [i]

Segundo Martins Filho, haveria um “desbalanceamento” da Justiça do Trabalho em favor dos trabalhadores [ii]. Indaga o Presidente: “Será que a balança não está pesando demais para um lado?”

De plano, impressiona a pergunta, vez que, sendo o questionador o administrador maior da Justiça do Trabalho, deveria, bem ao contrário, dar a resposta e ainda fazê-lo a partir de estudos e análises concretas e não de modo meramente opinativo, na forma de uma figura de retórica.

Cabia-lhe, pois, falar dos impactos para os trabalhadores das majoritárias decisões da Justiça do Trabalho que:

*não reconhecem o princípio da sucumbência no processo do trabalho;

* admitem a terceirização nas atividades-meio;

* estabelecem a responsabilidade apenas subsidiária do tomador dos serviços;

* acolhem o regime de 12×36;

* declaram a constitucionalidade do banco de horas;

* fazendo letra morta da norma constitucional que estabeleceu o limite de 44 horas semanais;

* não concebem a ilegalidade, fixando as necessárias reparações compensatórias, das horas extras ordinariamente prestadas e que ultrapassam, inclusive, o limite de duas horas ao dia;

* permitem a terceirização no setor público;

* prescrevem a responsabilidade subjetiva, e não a objetiva, nos acidentes do trabalho;

* mantêm a configuração do acidente do trabalho com base no pressuposto da necessidade da prova do nexo causal, não reconhecendo as presunções do Nexo Técnico Epidemiológico e fazendo sobressair os caracteres degenerativos;

* adotam a excludente de responsabilidade nos acidentes do trabalho a partir da visualização do “ato inseguro da vítima”;

* não consideram aplicáveis mais que um adicional de insalubridade mesmo quando presentes distintos agentes nocivos à saúde no ambiente do trabalho; *

* continuam adotando o salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade apesar da proibição constitucional e da referência expressa da Constituição a “adicional de remuneração”;

* não deferem a acumulação dos adicionais de insalubridade e de periculosidade; fixam valores quase sempre muito baixos para as indenizações por acidentes do trabalho e por danos morais e materiais, comparativamente aos que eram praticados na Justiça comum antes da alteração da competência [iii];

* homologam acordos sem respeito ao caráter imperativo da legislação do trabalho, legitimando autênticas renúncias a direitos;

* consignam nos acordos cláusula com quitação do extinto contrato de trabalho;

* pronunciam, sistematicamente, a prescrição quinquenal com base em interpretação extremamente restritiva da norma constitucional;

* rejeitam a eficácia da norma constitucional que garante aos trabalhadores a relação de emprego protegida contra a dispensa arbitrária;

* negam a teoria da subordinação estrutural e reticular para efeito do reconhecimento do vínculo empregatício;

* recusam a aplicação dos preceitos legais pertinentes ao dano social, cuja função é punir de forma adequada e exemplar, a prática das agressões reincidentes e deliberadas da legislação trabalhistas, retirando a vantagem econômica do agressor;

* resistem em garantir às trabalhadoras domésticas a integralidade de direitos; impõem limitações inconstitucionais e ilegais ao exercício do direito de greve etc.[iv


Fizesse uma pequena pesquisa, buscando dados concretos, seria obrigado a reconhecer, como já o fizeram, em 1986, o então Presidente do TST, Ministro Marcelo Pimentel, em seu discurso de posse[iv], e o Presidente do TST, Ministro Vantuil Abdala, no discurso proferido por ocasião da inauguração da nova sede do TST, em 1º/02/2006 [v], que o descumprimento da legislação trabalhista constitui-se “um bom negócio” para o empregador.

Como dito pelo professor e desembargador do trabalho aposentado do TRT3, Antônio Álvares da Silva, em razão dos juros praticados e da ausência de punição específica pela prática do ilícito, “demandar na Justiça do Trabalho tornou-se um negócio extremamente lucrativo e favorável ao empregador.

Enquanto protela com recursos infundados a obrigação de pagar, gira com o dinheiro, obtendo vantagens muito mais significativas que, depois de alguns anos, até mesmo superam o valor do débito” [vi].

Concretamente, no Brasil, o descumprimento deliberado da legislação trabalhista tornou-se “um bom negócio” para o empregador.

Mas o problema maior da fala de Martins Filho foi o de que não se limitou a isso. Partindo de premissa extraída de falas evidentemente parciais, chegou a uma conclusão generalizante.

Segundo a reportagem referida, o Ministro teria dito que desde que assumiu a presidência do TST, no início deste ano, tem ouvido de empresários e parlamentares a crítica de que a Justiça trabalhista superprotege o empregado em detrimento das empresas e “Se há tanta reclamação no setor patronal, alguma coisa está acontecendo.”

A fala é muito grave, pois, considerando apenas uma versão, sugere a existência, de forma generalizada, de atuações jurisdicionais indevidas. Faz uma acusação coletiva e sem qualquer prova, corroborando, simplesmente, para o descrédito da própria Justiça que administra e reprimindo, publicamente, os trabalhadores que buscam a efetividade de seus direitos, negando-lhes, pois, a cidadania.

Depois, saiu falando sobre as benesses do acordo, mas não proferiu uma só palavra a respeito do problema concreto dos direitos trabalhistas no Brasil, existente desde quando as primeiras leis foram editadas ainda na Primeira República, que é o da ausência de eficácia, caracterizada pela recusa sistemática de parte do empresariado brasileiro em admitir limites à exploração do trabalho humano.

Lembre-se, a propósito, da enorme resistência do setor empresarial à regulamentação de lei de férias, em 1923 [vii] e da mudança de postura do mesmo setor, no início da década, admitindo a importância da legislação, mas deixando claro que não teria condições de arcar com os custos decorrentes de sua aplicação, chegando mesmo a solicitar, expressamente, a prorrogação “tanto extensa quanto possível” de sua entrada em vigor, o que somente foi superado em 1932, quando se realizou acordo entre o governo e os industriais, do qual resultou a ineficácia concreta da legislação, conforme relata Werneck Vianna:

Na verdade, as duas partes cederam. Os empresários, ao aceitar a legislação social, o governo pela tolerância que mostrou quanto às faltas cometidas por aqueles contra suas disposições. A boa vontade do Ministério do Trabalho em relação ao empresariado paulista foi a ponto de delegar sua atividade fiscal ao Departamento do Trabalho do Estado, órgão subordinado à Secretaria da Agricultura. Por esse mecanismo, as classes dominantes de São Paulo passaram a controlar a implementação das leis trabalhistas, o que diz bem da eficácia da nova fiscalização. [viii]

Os industriais interessavam-se, verdadeiramente, pela parte da legislação que mantinha os sindicatos sob forte controle. De fato, o regime corporativo encontrou solidariedade no seio industrial. Aceitaram a legislação “sob a condição de que os sindicatos não invadam a arena social” e, assim, rejeitam o instituto da negociação coletiva, que segundo os empresários poderia submetê-los a serem explorados pela “classe operária organizada sindicalmente” [ix]. A negociação coletiva, portanto, não teve vida real, mesmo que regulada por Decreto desde 1931, tendo sido referida na Constituição de 1934 e referendada na Carta de 37.

Dentro desse contexto, a Convenção 81 da OIT, que trata da atuação do Estado na Inspeção do Trabalho, somente veio a ser ratificada pelo Brasil em 1957, chegando a ser denunciada em 05 de abril de 1971. Esta Convenção somente voltou a ter vigência no Brasil em 11 de dezembro de 1987, por intermédio do Decreto n. 95.461. E, hoje, são apenas cerca de 2.300 auditores fiscais do trabalho os responsáveis pela fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas em todo o país.

Não se esqueça, ainda, que a atuação dos fiscais do trabalho no âmbito rural somente teve início entre nós em 1994, com a edição da Instrução Normativa nº 24, de 24/3, possibilitando, a partir de 1995, por conta de pressão internacional, o começo da luta contra o trabalho escravo, sendo certo que a presença do Estado no âmbito rural não foi lá muito bem recebida, tanto que, em 28 de janeiro de 2004, três auditores fiscais do trabalho e um motorista, servidores do Ministério do Trabalho, foram assassinados em Unaí/MG.

O que se tem no Brasil, portanto, é uma realidade de extrema precariedade dos direitos da classe trabalhadora, o que faz, em concreto, com que os trabalhadores cedam diariamente em seus direitos e em sua dignidade, favorecendo ao processo de acumulação de riquezas que se dá no Brasil da forma mais intensa e perversa do que na maioria das regiões do mundo [x], a tal ponto de mantermos elevados e indecorosos índices de exploração de trabalhadores em condições análogas às de escravos, [xi],de exploração do trabalho infantil [xii], de um elevadíssimo número de acidentes do trabalho [xiii] (quase sempre não indenizados), de extensas jornadas de trabalho [xiv] (muitas vezes praticadas sem remuneração), sobretudo no trabalho terceirizado de limpeza, conservação e vigilância, sem falar, é claro, do trabalho doméstico.

O caminho a percorrer, portanto, é exatamente o inverso ao preconizado pelo Ministro Martins Filho.

O que se requer, com urgência, é a efetivação dos direitos e garantias trabalhistas, até porque a estratégia da redução de direitos já deu mostras suficientes, após 50 anos de experiências, de sua ineficácia.

Ora, considerando o que se verificou na realidade brasileira desde sempre e, de forma mais nítida, de 1964 prá cá, no sentido da não aplicação das leis e, de modo paradoxal, da flexibilização de leis que não se aplicavam, já se tem suficientemente provado que a retração de direitos não gera empregos, servindo, isto sim, para gerar maior sofrimento aos trabalhadores, agravar os problemas sociais e econômicos, ao mesmo tempo em que permite uma maior concentração de capital, satisfazendo, em geral, a interesses estrangeiros.

Nesse sentido, o que falta historicamente à Justiça do Trabalho é uma postura punitiva mais contundente das práticas de descumprimento reiterado da legislação trabalhista, que, ademais, acabam beneficiando o empregador que não respeita a ordem jurídica, em prejuízo daqueles que cumprem, de forma precisa, como deve ser, a lei trabalhista.

Essa necessária atuação da Justiça do Trabalho seria, inclusive, uma resposta ao requerimento expresso da sociedade em geral, que se diz cansada da ilegalidade, da impunidade, da sonegação, da corrupção e da injustiça.

O que se precisa entender, de uma vez por todas, é que os direitos trabalhistas não são meramente custos. São, isto sim, preceitos ligados à essencial preservação mínima da condição humana no modo de produção capitalista.

Direitos que estão previstos na Constituição e nas leis do país, tendo valor e vigência como quaisquer outros direitos e que, por isso mesmo, devem ser respeitados e aplicados, sendo que a mera discordância pessoal não é suficiente para retirar-lhes a validade, seja o “discordante” Presidente da República, Ministro de alguma pasta do Executivo, Ministro do Supremo Tribunal Federal, Presidente de entidade empresarial, diretor de algum grande conglomerado econômico, diretor de grande veículo de informação, ou mesmo Presidente do TST.

São Paulo, 31 de outubro de 2016.

[i]. Vide, a propósito: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Basta de violência aos direitos sociais”. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI35588,71043-Basta+de+Violencia+aos+Direitos+Sociais

[ii]. ALVES, Murilo Rodrigues. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,presidente-do-tst-ve-desbalanceamento-da-justica-em-favor-dos-trabalhadores,10000085271, acesso em 31/10/16.

[iii]. Vide, a propósito, CAVALCANTE, Sandra Regina. O papel da Justiça do Trabalho na prevenção e reparação dos acidentes e doenças ocupacionais. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública para obtenção do título de Doutora em Ciências – Área de concentração: Saúde Ambiental. Faculdade de Saúde Pública. Universidade de São Paulo, 2016, pp. 48-52 e pp. 149-179.

[iv]. “Demandar, na Justiça do Trabalho, tornou-se um grande negócio. Melhor a demanda que qualquer operação bancária, porque o empregador, aqui, retendo o dinheiro do empregado, sobre ele pagará 6% ao ano, quando, se operasse em Banco, sobre o mesmo seriam cobrados em torno de 40%. Se a lide demorar dois anos, realmente terá aumentado seu capital, às custas do empregado despedido, em 100%, com um acréscimo avultado de despesas para o Estado. Dupla agressão, ao empregado e ao estado, que lhe oferece uma justiça barata. O êxito do demandado está, pois, em saber administrar sua demanda na Justiça do Trabalho, porque, com o dinheiro do trabalhador, aumentará seu capital de giro. As medidas que retardam a solução final farão com que o empregador seja beneficiário de rico empréstimo, ao qual pagará juros de 6% ao ano, um ganho de, no mínim o, 50% sobre a érea bancária.” (PIMENTEL, Marcelo. Discurso de posse na Presidência do TST, 1986. Revista do Tribunal Superior do Trabalho: órgão oficial da Justiça do Trabalho, Brasília, DF — Brasil, ano de 1987, São Paulo, LTr, 1988, p. 208).

[v]. “A aprovação no Congresso dos projetos de reforma das leis processuais trabalhistas e também o que eleva os juros igualando-os aos da taxa Selic como é em todos os ramos do judiciário é prioridade nesse ano. Não se pode admitir que seja um bom negócio para o mau empregador o trabalhador ter que ir a juízo para haver seus direitos.” (Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=visualiza_noticia&id_caderno&id_noticia=3442

[vi]. SILVA, Antônio Álvares da. “Competência da Justiça do Trabalho para aplicação das multas administrativas”. Revista do TRT – 3ª Região, Belo Horizonte, n. 72, p. 45-63, jul./dez. 2005. p. 50.

[vii]. VARGAS, João Tristan. O trabalho na ordem liberal: o movimento operário e a construção do Estado na Primeira República. Campinas: UNICAMP/CMU, 2004, p. 282.

[viii]. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 222.

[ix]. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 221.

[x]. http://oglobo.globo.com/economia/brasil-tem-segunda-pior-distribuicao-de-renda-em-ranking-da-ocde-7887116, acesso em 19/06/16.

[xi]. http://reporterbrasil.org.br/2016/02/nova-lista-de-transparencia-traz-340-nomes-flagrados-por-trabalho-escravo/, acesso em 18/06/16.

[xii]. http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/11/em-2014-havia-554-mil-criancas-de-5-13-anos-trabalhando-aponta-ibge.html, acesso em 18/06/16.

[xiii]. http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-04/brasil-e-quarto-do-mundo-em-acidentes-de-trabalho-alertam-juizes, acesso em 18/06/16.

[xiv]. Brasileiro é campeão em horas extras: http://www.e-konomista.com.br/n/horas-extras-no-trabalho/, acesso em 18/06/16.


Fonte: VIOMUNDO
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Em um mundo onde o valor maior, acima de tudo, é o consumo turbinado, as pessoas, em diferentes países, passam a ganhar status pela quantidade de coisas e objetos que possuem. Essa distorção social trouxe modificações profundas nas relações interpessoais, despertando nas pessoas uma competição selvagem além de instintos e sentimentos inferiores, como a inveja, por exemplo, em ascensão meteórica nas relações interpessoais nos dias atuais. Desta forma o outro passa a ser visto ou como um obstáculo que deve ser eliminado, ou como um vencedor que não se suporta a presença e assim deve ser eliminado, ou, em menor escala como alguém que se aceita a presença. Nesse contexto, as relações em ambientes de trabalho tornam-se ainda mais competitivas, afastando os trabalhadores de uma unidade necessária para defesa de seus direitos. Aliado a isso, a precarização do trabalho cresce em todo mundo, transformando fábricas e linhas de produção nos campos de concentração nazistas do século XXI.

Como uma crítica as condições de escravos a que estão submetidos os trabalhadores nos dias atuais, e também a incapacidade de vivenciar a felicidade do outro, o PAPIRO produziu e publicou, em 24.08.2012, o conto abaixo. Em sintonia com o devastador artigo de VIOMUNDO, acima, o conto continua atual.

Boa leitura.

Rio Zona Norte - 5


O Sucesso de Maria das Graças


Em mais um dia, como em todos os outros dias da semana, Maria das Graças , pontualmente às seis horas da manhã aguarda, de pé em uma fila, o coletivo que a levará para seu trabalho.

Jovem, bonita, simples, de bom astral, paupérrima e vivendo na baixada fluminense, ficará por volta de uma hora no ônibus até chegar no seu local de trabalho, no bairro da Penha, zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

Na plenitude de seus vinte anos de idade, a jovem que deixou sua cidade natal e sua família no interior do estado de Tocantins ainda com dezessete anos fugindo da pobreza extrema para tentar a sorte na cidade maravilhosa, alimenta sonhos, planos e esperanças de uma vida melhor.

Uma vida que ela vê, ouve , diariamente nas mídias, como sendo o ideal para qualquer pessoa que queira ser feliz e alcançar o sucesso.

Vivendo em uma pequena casa de apenas um cômodo , em que paga aluguel e sobrevive com o salário mínimo que recebe pelo trabalho de operária em uma fábrica de roupas esportivas, espera um dia ser uma vencedora, uma mulher chique, bem cuidada e se possível famosa como os exemplos de seus ídolos das novelas e programas de TV, que saíram de baixo, lutaram e alcançaram o sol.

Nem sempre, mesmo chegando com antecedência na fila do ônibus, Maria das Graças consegue fazer a viagem sentada, confortável, ainda que os coletivos não tenham ar condicionado e o calor na região costuma ser infernal mesmo nas primeiras horas do dia, o que , por vezes, faz com que chegue ao local de trabalho já cansada.

Responsável e dedicada, nos dois anos em que trabalha na fábrica jamais chegou atrasada ou foi repreendida por mau comportamento ou qualquer infração no seu trabalho.

Cumpre, diariamente, de segunda a sábado, uma jornada de doze horas de trabalho, das sete horas da manhã às sete da noite, tendo quinze minutos antes de iniciar o trabalho para um lanche, uma hora para o almoço, e mais quinze minutos na parte da tarde para outro lanche.

A fábrica é terceirizada de uma gigante transnacional de material esportivo que tem alguns de seus ídolos como garotos propaganda de seus produtos.

A maioria das operárias é de mulheres, jovens, com o mesmo perfil de Maria das Graças.

O trabalho é extremamente cansativo, repetitivo e as condições do local são totalmente inadequadas, no tocante a temperatura ambiente, o calor é constante, as instalações, as cores da edificação e equipamentos, excesso de ruído e condições mínimas de segurança.

Os sanitários não tem uma higiene adequada e os aspectos ergonômicos para execução do trabalho baseiam-se em improvisações.

As equipes de operárias são divididas, no local de trabalho, em estações onde dez meninas realizam tarefas de corte e costura de tecidos.

Para cada estação existe um supervisor que fiscaliza , em tempo integral, o trabalho e a produção das meninas, não permitindo qualquer tipo de conversa que possa levar a uma interrupção no ritmo de produção.

Saídas para o banheiro são acompanhadas por uma supervisora , exclusiva para esse fim.

As meninas só podem conversar um pouco, nos horários de lanche, e no tempo que sobra da hora de almoço, que aliás, assim como os lanches, é oferecido no restaurante da empresa e descontado no salário das operárias.

Muitas operárias preferem trazer o almoço de casa, não apenas para economizar o almoço da empresa, como também pela péssima qualidade das refeições oferecidas.

A empresa , sequer disponibiliza um local para que as operárias possam aquecer suas marmitas.

Maria das Graças tornou-se uma referência na sua estação,ou seja no seu grupo de dez operárias. 



Sempre feliz, esbanjando simpatia e acreditando na vida, sua presença quebra, pelo menos em parte, o clima de terror dentro daquela fábrica .

Entoando canções, em voz bem baixa mas percebidas pelas outras nove enquanto realiza suas tarefas, cria uma atmosfera de paz e otimismo que ajuda a superar a dura realidade em que vivem.

Nos horários de lanche e almoço, sempre pode ser vista como o centro das atenções para as colegas da estação, que se encantam e adquirem forças com o alto astral de Maria das Graças.

Na hora em que deixam a fábrica, já do lado de fora, conversam rapidamente antes que cada uma tome seu destino.

Nesse momento, como de costume , Maria das Graças é vista , no centro da roda e as demais sorrindo , felizes com suas histórias.

Em um outro dia, o coletivo que conduzia a jovem para o trabalho quebrou durante o percurso, o que fez com que Maria das Graças tivesse que aguardar um outro coletivo e com isso chegasse atrasada, pela primeira vez em dois anos, no seu trabalho. 


Antes de assumir seu posto na estação, foi chamada pela gerência e advertida que caso o atraso se repetisse seria demitida por justa causa.


Ainda foi informada que os setenta minutos de atraso daquele dia seriam descontados de seu salário.

Não se abateu, assumiu seu posto e realizou suas tarefas com as competência e dedicação costumeiras.

Conversou com as colegas da estação, que ficaram revoltadas com o tratamento dado a menina, já que não tivera nenhuma culpa ou responsabilidade pelo que tinha ocorrido.

Maria das Graças não comprou a revolta, preferiu esquecer o assunto e conversar sobre a novela das nove que ela tanto adorava e não perdia um capítulo.

Reunidas na porta da fábrica, já na saída para casa nem parecia que a jovem tinha sido advertida, ameaçada de perder o emprego e ter sua ficha manchada.

No dia seguinte, pontualmente as seis horas da manhã, lá estava a jovem embarcando no coletivo que a levaria para seu trabalho.

Não poderia imaginar o que aconteceria na viagem.

Desta vez, sentada no banco ao lado da janela, sonhava e fazia planos caso ficasse rica.

Tinha certeza que ficaria, era uma questão de tempo, pouco tempo.

E foi em pouco tempo que tudo mudou dentro coletivo.

Dois homens armados anunciaram um assalto, isso em um ônibus cheio, porém não lotado, mas com pessoas de pé.

A menina entrou em pânico e ficou paralisada, era a primeira vez que vivia a experiência, de que já tivera conhecimento pelos programas de TV que tanto adorava e os tinha como referência.

O passageiro ao seu lado, um senhor também ficou imóvel.

De repente, um passageiro reagiu e sacou uma arma , dando início a um tiroteio dentro do coletivo.

O passageiro ao lado da jovem tentou se proteger rapidamente, jogando a parte de cima de seu corpo, o tronco, quase que no colo de Maria das Graças.

Terminado o tiroteio e tendo os assaltantes sido imobilizados, o passageiro ao lado de Maria das Graças estava imóvel, já morto, com um tiro na cabeça que acabou servindo como um escudo para o peito da jovem, o provável destino daquele projétil.

A menina , com a roupa já suja de sangue do senhor morto, tentava sair do local, o que conseguiu com a ajuda de outro passageiro e a ação de alguns policiais que passavam pelo local e prenderam os assaltantes.

Traumatizada, porém sem ferimentos, conseguiu sair do coletivo,e com as roupas sujas de sangue, foi para seu trabalho, desta vez chegando quase que na hora do almoço, por causa dos tramites legais que acompanham casos como este.

As colegas da estação ficaram chocadas com a história contada pela jovem e deram todo apoio , carinho a atenção na tentativa de amenizar o trauma da menina.

Não faltaram abraços e beijos para acalmar a querida amiga.

Entretanto, a gerência chamou Maria das Graças para se explicar do segundo atraso, agora de quatro horas, em dois dias seguidos. 


A jovem, com as provas do terror em suas roupas, explicou todo o ocorrido e ainda indicou a delegacia onde se processou o registro de ocorrência com o seu nome.


De nada adiantou.

Maria das Graças foi demitida por justa causa, sem direito a nenhuma indenização.

As colegas da estação, quando souberam da demissão da amiga ficaram ainda mais revoltadas, mas nada puderam fazer a não ser chorar e consolar a jovem, que apesar de perder o emprego não demonstrava irritação, revolta ou tristeza.

O pior ela já tinha passado, ou pensou que tinha sido o pior.

A tristeza tomou conta das colegas de estação , não mais teriam a alegria de Maria das Graças, uma igual a elas, para amenizar o terror daquela fábrica.

A jovem foi para casa, fora um dia estressante, deitou na cama e dormiu sem se preocupar com horário.

Mesmo assim acordou cedo no dia e seguinte e começou a pensar em conseguir trabalho.

Antes disso teve tempo para fazer o que não fazia nos dias de trabalho, foi a padaria, no mercado fazer umas comprinhas e ainda fez uma aposta em uma casa lotérica.

Cantando , a jovem não perdeu tempo nem se lamentou.

No dia seguinte, bem cedo, já estava em uma agência de empregos se candidatando a um novo emprego.

Preencheu fichas, fez entrevistas e conseguiu um emprego de balconista em uma lanchonete na Gávea, zona sul do Rio de janeiro.

Deveria começar em três dias, porém a aposta de loteria que fizera no dia anterior mudou totalmente sua vida.

Acertou as dezenas premiadas e ganhou uma quantia que lhe garantia a independência financeira.

Maria das Graças explodiu em felicidade.

Sorria, cantava, chorava sozinha em sua casa, mostrando toda sua beleza.

Nada falou sobre o prêmio, nem para vizinhos ou com as amigas da estação que não via desde o dia em que fora demitida.

Com a quantia ganha a jovem, esperta e segura voltou para sua cidade natal , no interior do estado de Tocantins.

Lá, com o auxílio da família, aplicou o dinheiro em imóveis, comprou uma casa nova para ela e os pais , e garantiu a independência financeira para a família.

Tinha agora, como renda, de suas aplicações vinte vezes o salário que recebia na fábrica.

Era uma vida confortável para eles.

Passaram seis meses de sua saída da fábrica e Maria das Graças tinha outra aparência.

Usava roupas idênticas aos personagens de suas novelas favoritas, comprova produtos de beleza e fazia os tratamentos de beleza sugeridos pelos comerciais de TV.

Estava ainda mais bonita e radiante.

Resolveu ir ao Rio de janeiro, para passeio, e aproveitou para visitar as colegas da estação na fábrica do terror.

Planejou chegar na fábrica no final do expediente pois poderia encontrá-las no lugar de sempre, ao lado , porém, não muito distante, do portão principal.

E assim aconteceu.

Avistando as colegas da estação, acenou , esbanjando as mesmas alegria , simpatia,  simplicidade e humildade de costume, que em nada mudaram com a mudança de sua condição financeira.

As nove colegas se aproximaram, não acreditando no que viam, e ficaram perplexas quando souberam de toda a história contada por Maria das Graças.

Após ouvirem tudo foram se aproximando da jovem e inicialmente, sem nada combinado, começaram a rasgar sua roupa, agredí-la com socos e pontapés.

A jovem , indefesa, estava quase desmaiando, semi nua, foi jogada ao chão, pisoteada e com uma pedra, uma das colegas bateu em seu rosto até afundar a face e o crânio, quase que esmagando.

Outra, arrancou-lhe os olhos com as mãos enquanto as demais com pedaços de pau tentavam furar seu corpo no abdômen.

Saciadas, as nove colegas se retiraram, sem falar uma palavra umas com as outras e deixaram o corpo de Maria das Graças, mutilado, sem vida ao lado do portão principal da fábrica do terror.

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