quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Diários de Botequim - 1 As Confissões de Lúcia

Diários de Botequim  - 1    As Confissões de Lúcia




No já distante ano de 1993 o Rio de Janeiro era governado por Leonel Brizola. A década perdida de 1990, anos de retrocesso por conta da hegemonia de um ideário nocivo a vida, teve, para os partidos de esquerda ,um início conturbado. Vivíamos ainda o impacto de novas idéias da Rio 92, a destituição de um presidente da república e uma onda de nostalgia trazida pelo novo presidente da república. Em meio  ao futuro, ao passado e  a um sentimento de alma lavada pela queda do presidente ainda se costuravam novas idéias por conta do então chamado fim das ideologias. Em nosso grupo era consenso que o socialismo não poderia ser tão imperfeito para desaparecer totalmente, assim como o capitalismo não era a perfeição desejada, como alardeavam os meios de comunicação. Sabíamos, mesmo que intuitivamente, que cedo ou tarde a História iria rugir pois os castelos ainda estavam de pé. Não poderia imaginar que somente nove meses depois daquele março de 1993, mais precisamente na passagem de ano para 1994, tomaria conhecimento, em companhia da amiga Lúcia no verde de Visconde Mauá no RJ, do grito que abalou o mundo oriundo das selvas mexicanas.  E  foi naquele março, em uma quinta-feira, que resolvi sair para caminhar pela orla marítima da cidade. Antes, porém, parei em um honesto botequim do bairro para saborear um caldo de feijão. No balcão, já terminando meu lanche ,vejo a aproximação de Ciro, amigo de longas conversas, proprietário de uma pequena agência de propaganda no bairro.
- que boa vida, disse enquanto se aproximava.
- o dia merece essa reverência. E você, o que anda fazendo por aqui nessas horas ?
- tenho uma boa prá você. Marquei com Nelsinho aqui as três e meia, agora, prá gente ir num baile lá Tijuca.
- baile ??? uma hora dessas de quinta-feira ? E lá na Tijuca ?
- e a coisa é boa. É a primeira vez que vou mas a referência que tenho é segura.
- mas baile de quê Ciro ?
- baile, cara, com orquestra ao vivo e tudo mais, em um clube lá do lugar.
Enquanto falava sobre o baile Nelsinho chegou todo arrumadinho, o que era raro.
- tá bonito , hein mermão. Será que hoje você consegue alguma coisa por lá, brincou Ciro.
- e aí ? Vamos nessa, disse Nelsinho ansioso.
- mas que história é essa. Que horas esse baile começa e vai até que horas, perguntei.
- começa agora as quatro e só vai até as oito. vamos nessa ? Vai lá, muda a roupa rápido.
- E foi o que fiz. Em poucos minutos já estava vestido para um baile. Entramos no carro de Nelsinho e fomos para Tijuca. Chegamos no local por volta das quatro e trinta e para minha surpresa, o salão do clube estava lotado. Tinha gente de tudo que é tipo. Homens e mulheres trajando roupas de trabalho, hippyes,  pessoas da terceira idade, adolescentes, gente de meia idade. Tudo isso ao som de uma animada orquestra. O detalhe que chamou a atenção foi que a maioria esmagadora  das pessoas estava desacompanhada. Ciro estava eufórico e foi logo dizendo.
- vamos procurar minha amiga. Marquei com ela .
Andando com dificuldades no meio daquela multidão, olhando nas mesas já todas ocupadas, Ciro encontrou sua amiga. Uma mulher loira, bem vestida, simpática  que estava acompanha de uma amiga. Depois das apresentações de praxe, fiquei sabendo que a amiga de Ciro era Telma e que sua amiga era Lúcia, uma morena, de estatura mediana, de meia idade e sorridente. Com dificuldade conseguimos mais três cadeiras e ocupamos a mesa com as duas mulheres. Como éramos três homens e duas mulheres, não perdi tempo em conversas e tirei Lúcia para dançar. De imediato rolou uma química na dança, o que facilitou nossa conversa. Enquanto dançávamos sem parar, para desespero do arrumadinho Nelsinho que ficou sozinho na mesa, trocávamos informações aprofundando o conhecimento sobre ambos. Ciro estava em êxtase com Telma, fazendo as mais variadas evoluções pelo salão.  Lúcia era jornalista, tinha quarenta e quatro anos e já era avó de dois meninos, que moravam com a filha única na cidade São Paulo.  Independente, bem sucedida na profissão, trabalhava como repórter há vinte anos em um grande grupo de comunicação do Rio de Janeiro, dedicando mais tempo a emissora de rádio do grupo, onde vivia pela cidade cobrindo a desgraça do Brizola, como ela costumava dizer. Nossa amizade foi imediata. Depois daquele baile, e dois outros mais em que nos encontramos no mesmo lugar, passamos a ter encontros frequentes em um bar do bairro de Botafogo, sempre pelo fim da tarde, que era reduto de profissionais da imprensa. Circulavam por lá jornalistas, repórteres de rua, motoristas, fotógrafos , cinegrafistas e outros profissionais de diferentes grupos de comunicação do Rio de Janeiro. Durante boa parte do ano de 1993 convivi com aquelas pessoas, até que em um dia, Lúcia me convidou para vivenciar um dia de trabalho seu. Conforme combinado, isso já pelo final daquele ano, entrei em um carro de reportagem do grupo.  O motorista, Lúcia e eu saímos em direção a zona norte da cidade. Logo de saída, o motorista tirou  um baseado do porta luvas do carro e acendeu sem a menor cerimônia compartilhando com Lúcia.
- mas já pela manhã, e no trabalho, peguntei.
- é todo dia, respondeu o motorista
- e vocês não tem medo de serem flagrados pela polícia, peguntei.
- a polícia não aborda veículos da imprensa, respondeu de imediato Lúcia.
- e por aqui prá onde a gente vai nós conhecemos todos eles, disse o motorista.
- muitos, inclusive , dão a informação correta onde se pode comprar coisa boa, ou até vendem prá gente. disse Lúcia.
- polícia boa, hein, comentei.
- existem várias polícias, disse Lúcia e continuou. Existem aqueles policiais que fazem o trabalho correto, não são corruptos. Existem aqueles, de um outro grupo, que são aliados do crime. E existe, ainda o terceiro grupo, daqueles que são concorrentes do crime. Esses últimos são os piores. Prá onde a gente está indo a polícia é aliada dos bandidos. Por lá a gente pode comprar tranquilo nossos cigarrinhos e até mesmo, servir de fornecedor para a classe média da cidade, principalmente na zona sul.
- vocês da imprensa, como fornecedores, perguntei.
- claro, disse o motorista. Ninguém pára carro da imprensa nas ruas e ainda dá prá melhorar o salário. A gente entrega em casa, só prá bacana de classe média alta e rica.
- quer dizer que imprensa e polícia por vezes são cúmplices , peguntei provocando Lúcia.
- a imprensa faz o jogo da polícia e a polícia faz o jogo da imprensa. As vezes, quando um caso tem grande repercussão, aí não dá para aliviar a polícia, mas na maioria das vezes quem paga é povo. Se alguém de uma comunidade carente tem um parente atingido e morto por uma bala perdida da polícia, o assunto pode até ser notícia, por um ou dois dias, mas depois o assunto cai propositalmente no esquecimento na imprensa, o policial não é punido e aquela conversa toda de análise de onde partiu o tiro é só enganação. Se for um caso de grande repercussão , os policias são até mesmo detidos, julgados, mas logo estão de volta. As pessoas pobres que se virem. Chega a dar pena. Elas pedem prá gente divulgar mas a gente sabe que se for pobre não tem espaço nas redações. Lúcia continuou. Agora mesmo nós vamos apurar uma denúncia que certamente servirá para atacar o governo do Brizola. Aliás, a gente não faz outra coisa. Notícia sobre o governo do Brizola , e isso é orientação do chefe, é para desgastar o governo. Coisa boa que o governo faz é proibido divulgar. Nem adianta tentar fazer uma matéria especial que não passa e ainda a gente corre o risco de perder o emprego.
- mas os fatos são os fatos. disse.
- isso é o que você pensa, disse em  meio a sorrisos dela e do motorista. A notícia não é o fato. A notícia , para a maioria da imprensa, é aquilo que ela, a imprensa, deseja que seja. E aí entram vários interesses, políticos , mercantis , religiosos e outros. O papel da maioria da imprensa, ou melhor o negócio da maioria da imprensa não é a informação e sim o exercício do  poder. A informação é a embalagem para o produto poder. Você passou a conviver conosco nesse meses, percebeu que frequentamos locais onde estão somente profissionais do setor. Por isso o corporativismo é forte, por que sabemos qual é a verdadeira realidade do jornalismo. Não existe pureza, honestidade, ética e muito menos credibilidade no trabalho da maioria da imprensa.
- mas existem profissionais honestos, não ?
- claro que existem, mas não podem sair da linha editorial da empresa, É uma honestidade com limites, com censura interna. Se sair da linha são mandados prá rua. Então, a gente prá não perder o emprego faz o jogo. Mas o interessante é que a maioria dos repórteres, pessoal de apoio, jornalistas de baixo são eleitores do Brizola ou do PT, ou seja , contrários aos interesses da alta direção.
- esquizofrênico, não ? perguntei
- bastante, mas é a realidade. Confesso que não tive coragem para jogar todo esse nojo pro alto. Você lembra das eleições municipais de 1992, perguntou Lúcia.
- claro, mas do que especificamente, perguntei.
- com o Brizola como governador veio uma orientação  de cima da empresa para atacar a candidata do PT. Prá eles era inaceitável que a cidade do Rio de Janeiro também ficasse nas mãos da esquerda. O Tonico sabe bem disse, disse olhando para o motorista. Naquela eleição foi montado um esquema, dez dias antes do primeiro turno, prá derrubar a Bené. Aquela onda de arrastões em prédios da zona sul da cidade foi organizada e colocada em prática por gente da imprensa. Pessoal que tem acesso as favelas  e incitou a violência, junto com os chefes do crime , pra espalhar pânico na classe média, dizendo que se a Bené vencesse as eleições, como iria vencer, ela como favelada iria favorecer os favelados, a cidade se tornaria um caos , etc... Em paralelo inflaram o Cesar Maia ,que só tinha  1% das intenções de voto, como o candidato bem preparado e culto, ideal para assumir a cidade. O resultado você sabe.
- mas isso é terrorismo, comentei.
- como eu disse prá você, o negócio da imprensa não é jornalismo, informação, esclarecimento. O negócio da imprensa é o exercício do poder.
Chegamos em local da zona norte, em uma comunidade carente, onde a polícia fazia uma operação.
- isso e só enganação, disse Lucia e continuou. É só prá aparecer que  estão trabalhando contra o crime. A matéria tem que seguir a linha de que o Brizola não deu,com o tempo, a devida atenção no combate ao crime. Já os fatos, que se danem.
- e a população , com é que fica ?
- não fica. Para a imprensa a população deve pensar e acreditar naquilo que imprensa deseja que a população acredite. Se você for espeto e bem informado, dá sobreviver, caso contrário será mais um que terá a consciência modelada.
O dia fora longo e surpreendente para mim. Ao chegar em casa liguei a TV para assistir as "notícias" e terminar o dia "bem informado".

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