segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Ninguém nasce odiando



Ninguém nasce odiando


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“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.”
Nelson Mandela , “Long Walk to Freedom”, (1995).

Fonte: Blog da Luciana Oliveira

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Os invisíveis geram medo

Os invisíveis geram medo

São mais de 160 pessoas assassinadas por dia. Na Síria, por exemplo, em quatro anos de guerra morreram 256 mil pessoas. No Brasil, no mesmo período, quase 279 mil.2 Não é uma guerra civil declarada, mas este é o país em que os policiais mais matam e mais morrem no mundo. Se de um lado estão os policiais e o Estado, do outro lado quem é o inimigo?
Por: Silvio Caccia Bava
2 de agosto de 2017
Crédito da Imagem: Claudius

A situação ainda não está fora de controle, mas há riscos de entrarmos em um período de confrontos e violência muito mais agudos do que vivemos atualmente. O que acontece hoje no Rio de Janeiro é sinal do que vem por aí. Já assusta todo mundo o fato de que o Brasil atingiu a marca recorde de 59.627 homicídios por armas de fogo em 2014, uma alta de 21,9% em comparação aos 48.909 óbitos registrados em 2003, segundo o Mapa da violência divulgado em 2016.1

São mais de 160 pessoas assassinadas por dia. Na Síria, por exemplo, em quatro anos de guerra morreram 256 mil pessoas. No Brasil, no mesmo período, quase 279 mil.2 Não é uma guerra civil declarada, mas este é o país em que os policiais mais matam e mais morrem no mundo. Se de um lado estão os policiais e o Estado, do outro lado quem é o inimigo?

O que as classes dominantes nos querem passar – e para isso se utilizam da TV – é que o confronto se dá entre criminosos, malfeitores, bandidos, vagabundos, narcotraficantes, corruptos e os que defendem a ordem e a lei. Usam para isso programas como Cidade Alerta.

Ao produzir no imaginário dos brasileiros esse tipo de confronto, a TV oculta a pobreza, o desemprego, a falta de oportunidades para os jovens, a precariedade de nosso sistema educacional, a falta de moradia, os reais problemas da grande maioria dos brasileiros e brasileiras. Essa ocultação falseia o diagnóstico. Já que o que aparece na TV sobre os pobres é a perseguição aos bandidos, o imaginário do brasileiro acabou aceitando a percepção do pobre como um ser perigoso, que necessita ser controlado.

Na verdade, trata-se de repressão e controle policial sobre as grandes maiorias empobrecidas, controle que tem como imagem emblemática as Unidades de Polícia Pacificadora – as UPPs – instaladas em favelas do Rio de Janeiro e que, a pretexto de combater o narcotráfico, chegam a impor toque de recolher em certas áreas da cidade. Isso para não falar na política de encarceramento maciço sustentada pelo nosso Judiciário, hoje com mais de 200 mil presos “para averiguação”, em sua maioria jovens e negros, sem nenhuma acusação pesando sobre eles.

Numa sociedade organizada para facilitar os negócios e atender aos interesses das grandes empresas, a imagem construída da sociedade é a de um grande mercado onde se oferecem produtos e serviços para quem tem recursos para comprá-los. Consumismo e produtivismo são as molas do que se entende como progresso. A TV aberta é a vitrine desse mercado e se orienta para seduzir as classes médias e impor um padrão de consumo. O pobre, isto é, a grande maioria dos brasileiros, não existe na TV. E se é pela TV que a grande maioria se informa, então os pobres não existem para a sociedade em que vivem. Não se sabe como é a vida nas favelas, como funcionam as escolas públicas, como são as relações de rua e de bairro, o que fazem os jovens da periferia etc.

Ignorar os pobres tem como duplo propósito ignorar suas demandas, suas necessidades, e mantê-los sob controle, de preferência alimentando uma situação de apatia.

“A representação de si, neste contexto, é decisiva. Aqueles que não têm nome não podem se nomear, não podem existir enquanto pessoas e não podem agir coletivamente. Se tivermos essa preocupação no espírito, compreenderemos melhor o interesse dos dominantes de fazer desaparecer do campo das representações certas categorias sociais e de querer que outras ocupem todo o espaço, pois aqueles que se tornaram invisíveis aos olhos dos outros se tornaram também invisíveis para si mesmos. Ao contrário, as categorias sociais superexpostas, supervisíveis, podem fazer crer que a representação de si mesmas é a única realidade social efetiva. Assim se constrói o imaginário social coletivo e a ideia que cada um faz de si mesmo.”3

Não basta dizer que a solução para a violência presente na sociedade não é o encarceramento maciço nem o assassinato em massa, como vem sendo feito com os jovens negros da periferia. Soa quase impossível nesse cenário polarizado identificar as causas da violência com a falta de políticas públicas que ofereçam às maiorias as mínimas condições de vida, especialmente nas grandes cidades. A juventude que tem perspectivas de futuro (de emprego, moradia, mobilidade, saúde, educação) não adere à violência, à criminalidade.

As políticas do atual governo cerceiam o futuro de nossa juventude ao impor profundos cortes nas políticas sociais. É um ataque aos direitos humanos, aos direitos sociais, uma violência deliberada sobre a vida das maiorias.

Nessas condições, a única maneira de essas maiorias se tornarem visíveis para o conjunto da sociedade e verem suas necessidades e demandas inscritas na agenda política nacional é por meio da mobilização social, do protesto, da pressão sobre o sistema político.

Se essa pressão vai se radicalizar e assumir formas violentas ninguém sabe, mas parece que somente dessa forma, somando as demandas de diferentes grupos sociais em um movimento amplo de protesto e questionamento da ordem estabelecida, é que o povo sai do anonimato, pode se reconhecer na sua existência, nas suas demandas, tornar-se ator político, apresentar-se para o conjunto da sociedade em toda sua potência. E é disso que as classes dominantes têm medo.

*Silvio C. Bava é diretor do Le Monde Diplomatique Brasil

1 Julio Jacobo Waiselfisz, Mapa da violência 2016, Flacso Brasil.

2 G1, Jornal Nacional, 28 out. 2016.

3 Jean-Luc Mélenchon, L’Ère du peuple [A era do povo], Fayard/Pluriel, Paris, 2017, p.89.

ERRATA

As notas do editorial da edição anterior (n. 120) não foram publicadas. Seguem abaixo.

1 Ernesto Laclau, entrevista ao Le Monde, 9 fev. 2012.

2 Larry Diamond, cientista político e professor da Stanford University. Entrevista à Folha de S.Paulo, 17 maio 2017.

3 Francisco Panizza (org.), El populismo como espejo de la democracia, FCE, Buenos Aires, 2009.

4 Ibidem.

5 José Murilo de Carvalho, “Ecos do passado”, Folha de S.Paulo, 28 maio 2017.

6 Boaventura de Sousa Santos, A difícil democracia, Boitempo, São Paulo, 2016, p.160.

7 Evelyne Pieller, “Patologias da democracia”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2017.

8 Chantal Mouffe e Iñigo Errejón, Construir um povo. Por uma radicalização da democracia, Éditions du Cerf, Paris, 2017.

Fonte: Le Monde Diplomatique

O Autogoverno Zapatista

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QUASE 15 ANOS DE AUTOGOVERNO ZAPATISTA

Em Chiapas, a revolução continua

No início dos anos 1990, o levante zapatista encarnou uma opção estratégica: mudar o mundo sem tomar o poder. A chegada ao governo de forças de esquerda na América Latina, alguns anos depois, parecia tirar-lhes a razão. Mas, da Venezuela ao Brasil, as dificuldades das administrações progressistas levantam uma questão: como está Chiapas?

Por: François Cusset
3 de agosto de 2017
Crédito da Imagem: Daliri Orepeza


Eles têm medo que descubramos a possibilidade de governarmos a nós mesmos”, lança a maestra Eloisa. Essa frase é proferida desde 2013 a centenas de simpatizantes vindos do México e de fora do país para conhecer a experiência zapatista durante uma semana de imersão ativa. Batizada carinhosamente de “Escuelita”, essa iniciativa visava inverter a síndrome do evangelizador, a “regresar la tortilla”, como convidava em outros tempos o antropólogo André Aubry: educar-se pelo contato com centenas de camponeses maias que praticam, dia após dia, o autogoverno. Ao inaugurar a Escuelita com essas palavras, em 2013, Eloisa evocava naquele momento o essencial, que ainda deixa alguns observadores incrédulos: modesta e não proselitista, a experiência zapatista rompe, há 23 anos, os princípios seculares, e hoje em crise, da representação política, da delegação do poder e da separação entre governantes e governados – que estão na fundação do Estado e da democracia modernos.

A experiência se deu em uma escala não negligenciável. Se por um lado números exatos não estão disponíveis, estima-se que nessa região de florestas e montanhas que cobrem um terço da superfície do estado de Chiapas (28 mil quilômetros quadrados, quase o tamanho da Bélgica), de 15% a 35% da população – 100 mil a 250 mil pessoas segundo estimativas1 – forma a base de apoio do zapatismo, ou seja, aqueles que o reivindicam e participam dele. Esse fato poderia ofuscar a visão folclórica do capuz e dos discursos eloquentes do ex-subcomandante Marcos (rebatizado Galeano, em homenagem a um companheiro assassinado): nessa escala e com essa duração, a aventura zapatista é a mais importante experiência de autogoverno coletivo da história moderna. Mais longa que os operários e camponeses a favor da Revolução Russa de 1917 (antes da transferência de seus poderes aos executivos bolcheviques); que os clubes e conselhos da Comuna de Paris, derrotados em maio de 1871 após dois meses de efervescência; que o “conselhismo” colocado em prática na Hungria e na Ucrânia após as insurreições de 1919; mais que a democracia direta de camponeses na Guerra de Aragão e da Catalunha entre 1936 e 1939; e que as experiências políticas autonomistas pontuais, ou menos completas, como a de bairros urbanos em Copenhague depois de 1971 ou em Atenas hoje.

Enquanto essas experiências foram todas reprimidas ou revertidas e os governantes de esquerda do resto da América Latina decepcionavam uma parte dos movimentos populares que os levaram ao poder (no Brasil, na Venezuela, na Bolívia, no Equador…), o zapatismo manteve-se firme. Pouco a pouco, rompeu com o Estado, solidificou suas bases e delineou uma autonomia política inédita, levada adiante hoje pela primeira geração nascida após a revolta de 1994, mediante o abandono progressivo e pragmático da crença no Estado e no vanguardismo leninista no início do processo: “Quando chegamos, éramos quadrados como os profissionais da política, mas comunidades indígenas – que são redondas – apararam nossas arestas”, repete estranhamente Galeano. O desafio: mudar a natureza do poder político; na falta de poder, levá-lo a uma escala maior. O resultado está aí: “Hoje o movimento está mais forte, ainda mais determinado. As crianças de 1994 são atualmente os quadros do zapatismo, sem cooptação ou traição”, reconhece o sociólogo Arturo Anguiano, que, longe de cúmplices naturais da causa, foi o cofundador do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (trotskista), o PRT. É o que a vida cotidiana das comunidades zapatistas demonstra hoje.

“O capitalismo não vai parar. O que se anuncia é uma grande tempestade. Aqui nos preparamos fazendo as coisas sem ele”, resume com um sorriso um homem de 20 anos que há três integra o Conselho de Bom Governo (Junta de Buen Gobierno) de Morelia, a menos povoada das cinco zonas zapatistas, e está prestes a deixar o posto depois de ter formado seus sucessores. Situado no coração da zona, a 1.200 metros de altitude, o caracol de Morelia fica em uma colina luxuriante. O termo caracol se refere à lentidão necessária da política e também a alguns edifícios de reunião que são os escritórios do chefe local de cada zona. Aqui, o caracol é um mirante de pastos e cultivos: 700 hectares de terras recuperadas, para 7 mil habitantes espalhados sobre um território amplo. Entre a quadra de basquete e o auditório de tijolos pintados, algumas dezenas de homens e mulheres deixam o caracol com mochilas nas costas, após três dias de reuniões. Seguem seus passos meio entorpecidos pelas longas horas de assembleias e com um ar consternado em seu semblante bronzeado, que mistura a serenidade amena dos indígenas tzotzils – povo majoritário aqui – e a preocupação daqueles que passaram três dias debatendo sobre as tarefas (cargas) assumidas por cada um voluntariamente, desde a divisão das colheitas até a construção das escolas.

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NA ESCOLA, CRÍTICA AO CAPITALISMO

Ao lado do pequeno cibercafé de alvenaria, o jovem membro do conselho continua: “Não buscamos espalhar o zapatismo, que é muito particular, e sim a ideia que subjaz à experiência: a autonomia geral”. Eles agora são três a nos descrever o funcionamento de Morelia. Há um coletivo por setor de produção, da rádio ao artesanato têxtil, passando pela apicultura. Com 140 cabeças de gado e 10 hectares de plantações de milho (milpas), a zona conquistou a autossuficiência alimentar graças a seus pomares, granjas, 5 hectares de café e suas padarias cooperativas.

Os excedentes são vendidos aos não zapatistas da região, os “partidistas”, que vivem de subsídios do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que está atualmente no poder e subsidia alguns vilarejos em troca de trabalho. Indiretamente, são os fundos do governo que permitem aos zapatistas comprar, em regime de propriedade coletiva, o que eles não produzem: máquinas, material de escritório e os poucos veículos que levam as pessoas às reuniões nos quatro cantos da zona. Os projetos individuais, como a montagem de uma cantina-mercearia, são financiados pelos bancos autônomos zapatistas (Banpaz ou Banamaz), que fazem empréstimos à taxa de 2%. Em toda a zona, come-se até saciar a fome, de forma frugal e tradicional, sem ajuda do Estado ou de ONGs: arroz, tortillas, frijoles (feijão preto), café, algumas frutas e, mais raramente, frango, ovos, cana-de-açúcar. Poucos computadores e livros nas casas, poucos carros, e roupas sóbrias: as condições materiais são mínimas, mas nada de essencial falta. Essa sobriedade se contrapõe à (falaciosa) ideia de abundância euro-americana dos shoppings e lojas de consumo.

Os encarregados voluntários do caracol de Morelia nos descrevem as três missões sociais assumidas pela coletividade: educação, saúde e justiça, desempenhadas, em regime de turnos, por – antes de professores, médicos e juízes – “promotores” benfeitores. E seus vizinhos se ocupam de suas terras e de seus lares enquanto estão em missão. Se as cerca de seiscentas escolas zapatistas das cinco zonas propõem três ciclos de estudos, todo o resto é discutido coletivamente e adaptado às necessidades locais, sejam elas relacionadas ao ritmo de cada um ou aos programas e calendário escolar. Contudo, encontram-se em toda parte cursos de espanhol e línguas indígenas, história colonial e educação política (crítica ao capitalismo, estudo de lutas sociais em outros países), matemática e ciências naturais (“a vida em meio ambiente”). Da limpeza à pintura dos murais, o trabalho coletivo é cotidiano. E, desde o fim do segundo ciclo, com 15 anos, os jovens, todos alfabetizados, podem propor desempenhar uma tarefa, após votação em assembleia e uma formação de três meses.

Soma-se ao processo, na saída de San Cristóbal, a única universidade zapatista, fundada por Raymundo Sánchez Barraza: o Centro Indígena de Capacitação Integral (Cideci). Das escadarias às cortinas pintadas, tudo é obra dos estudantes – duzentos jovens acolhidos a cada ano para aprender saberes autônomos: fabricação de sapatos, teologia ou utilização de máquinas de escrever, mais seguras que os softwares de edição de texto, devido aos cortes frequentes de eletricidade, assim como um seminário político às quintas-feiras. Inspirado nos princípios antiutilitaristas do pedagogo Ivan Illich (“aprender sem escola”) e também nos primeiros profetas indígenas, o Cideci também acolhe os grandes colóquios zapatistas. O último, em dezembro de 2016, foi sobre as ciências exatas “contra ou a favor” da autonomia (ConCiencias).

Igualmente, o sistema de saúde é confiável: “casas de saúde” asseguram cuidados básicos de qualidade, de ecografia a exames oftalmológicos; cada caracol conta com uma clínica onde, por enquanto, cirurgiões externos voluntários realizam as cirurgias; e ONGs fornecem os medicamentos alopáticos. O uso de ervas medicinais e terapias tradicionais é incentivado por toda parte, e a ênfase está na prevenção. A justiça zapatista, assegurada por voluntários e comissões ad hoc, trata de casos em geral leves – desacordos sobre as terras ou os raros conflitos internos entre os vilarejos –, e visa a antes reparar que punir: diálogo com o acusado e trabalhos coletivos em vez de detenção (existe apenas uma prisão para o conjunto das cinco zonas), sem fiança nem mecanismos de corrupção. Mais uma vez, os não zapatistas preferem esse sistema mais justo, que, em vinte anos, fez cair a delinquência e as violências domésticas em toda a região – a proibição do álcool, que as mulheres impuseram no âmbito de sua “lei seca”, é a primeira das leis zapatistas que elas colocaram em votação e que muito contribuiu para isso.

A novidade é a prática crescente de trazer os partidistas para trabalhar nos serviços públicos zapatistas, o que permite contratá-los e assim modificar a relação clientelista, permeada pela burocracia e pela dependência e esmolas do partido. A dependência: é o que os zapatistas, passo a passo, buscaram eliminar, até mesmo a relacionada a ONGs. Mas a autonomia, “processo sem fim”, segundo eles, continua parcial e muitas vezes “remendada”: a eletricidade vem dos mesmos cabos da operadora nacional, embora sem custos, e alguns produtos ainda dependem de compras coletivas, como óleo de cozinha e telefones celulares.

UMA ORGANIZAÇÃO VERTICAL E HORIZONTAL

Essa experiência insólita, longe do radicalismo de papel, assume suas tentativas e arbitragens delicadas. Seu princípio de aprendizagem: “caminar preguntando” (caminhar perguntando). Já o mote “mandar obedeciendo” (mandar obedecendo), afixado por toda parte, sugere que, diante do horizontalismo puro dos fantasmas anarquistas, convém sempre mesclar uma dose mesmo que marginal de organização – e eficácia – vertical. As comunidades são consultadas longamente, por meio de idas e vindas com os conselhos da zona, mas por iniciativa destes últimos, que formulam e submetem suas propostas e, se necessário, organizam votações. As tarefas voluntárias são rotativas e revogáveis, funcionando dentro de uma política não profissionalizada, mas são os mais competentes que as ocupam (e são eleitos) com mais frequência que outros. É preciso reconhecer que, ao longo de consultas minuciosas, “às vezes o povo dorme”, como dizia outro maestro da Escuelita. Antes de um sistema totalmente horizontal, existe uma tensão – fecunda – entre o governo de todos e mecanismos diagonais, ou até verticais. Trata-se de uma concepção processual e evolutiva, na qual se inventa e testa constantemente, seja em relação às regras de voto ou à duração e aos critérios das tarefas (as mulheres, em geral menos à vontade no engajamento público, podem, por exemplo, ocupar-se de uma tarefa em duas ou três companheiras).

Na origem de tudo isso está o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que surgiu na floresta em uma manhã de janeiro de 1994. Essa estrutura militar vertical é dotada de uma instância de comando, o Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI). O EZLN zela pela perenidade da experiência, mas decidiu que se retiraria do funcionamento político em 2003, no momento da ruptura com o Estado mexicano e da instauração do sistema de autogoverno. Este, por sua vez, funciona em três níveis, após a reordenação geográfica que desfez as divisões administrativas anteriores: o da comunidade de cada vila, onde atuam agentes e comissões (para a segurança, produção etc.); o das comunas, que agrupam as vilas (municípios); e, acima dos outros, o das cinco grandes zonas, cujos centros são os cinco caracoles (Morelia, La Garrucha, Roberto Barrios, Oventic e La Realidad).

A originalidade do zapatismo é também a própria limitação da possibilidade de outros movimentos sociais do mundo replicarem suas invenções e mecanismos: a convergência histórica, em seu seio, de ingredientes heterogêneos, e até incompatíveis, que aqui se tornaram indissociáveis. Antes de mais nada, existe o núcleo indígena, que remete aos povos mesoamericanos dessa região (em particular os tzotzils, tzeltales, tojolabales e os choles) e sua tradição cosmoecológica ancestral, mas também a uma longa história de resistência anticolonial. Se o indigenismo zapatista jamais é essencializado e mantém aberto seu potencial de universalização, é porque ele se dá menos na chave étnica e mais na memória de cinco séculos de lutas contra a “sangria do Novo Mundo”,2 o que compreende o colonialismo interno das novas elites mestiças do México independente, que se arrogou o direito de representação dos indígenas e confiscou suas terras e modos de vida. Há o papel decisivo da Igreja – o do catolicismo sincrético típico do México e da versão local da teologia da libertação, a “Igreja dos pobres” inaugurada no Peru nos anos 1960 –, que também remete à memória colonial mexicana, já que desde o século XVI os únicos defensores dos indígenas contra os conquistadores foram os religiosos, como Bartolomé de las Casas e o bispo Vasco de Quiroga, com seu projeto de uma “república dos índios”.

Há sem dúvida um elemento marxista-leninista disparador, oriundo das guerrilhas dos anos 1960-1970, mas amadurecido após 1994 na luta antissistêmica e aberta contra o neoliberalismo, a pilhagem dos recursos naturais e a mercantilização de todas as formas de vida que pratica. Há ainda componentes menos óbvios, de tipo libertário e principalmente antipatriarcal, como o princípio zapatista da igualdade radical de gênero, que remete a uma filiação pré-colonial. Sem esquecer os intercâmbios com uma vasta rede internacional de apoio, convidada a comparecer aos encontros anuais: dezenas de músicos e grupos de rap e ska com refrões zapatistas (de Rage Against the Machine a Manu Chao, passando por Nana Pancha do México e por Pepe Hasegawa do Japão); milhares de ativistas e intelectuais que participaram dessa construção, como os escritores José Saramago, Gabriel García Márquez, John Berger e Umberto Eco, e os acadêmicos Alain Touraine e Noam Chomsky; além de outros famosos, como o ecologista José Bové, o cineasta Oliver Stone ou ainda Danielle Mitterrand. São inúmeros os simpatizantes do zapatismo, ou “zapatizantes”.

Há ainda a história nacional mexicana, com seu orgulho e singularidades. O projeto zapatista não é de secessão, de independência contranacional. A cada reunião do Congresso Nacional Indígena (CNI), criado em 1996, o hino nacional ressoa antes dos cantos zapatistas, e o estandarte tricolor do país se move ao vento ao lado da bandeira preta e vermelha. “Não pensamos em formar um Estado dentro de um Estado, e sim um lugar onde podemos ser livres”, repetem os comandantes do EZLN durante suas marchas pelo país. Esse patriotismo combativo é herança política de dois séculos de lutas, desde a independência em 1810. É a herança homônima, antes de mais nada, do chefe agrário Emiliano Zapata, general do Exército Libertador do Sul, que, antes de ser sufocado em 1919, se opôs à tradição latifundiária com o Plano de Ayala para a redistribuição das terras e a democracia local, vigente por alguns anos durante a “primeira república social dos tempos modernos”,3 nas palavras do revolucionário belgo-russo Victor Serge.

Para além disso, figura a superpolitização de um país com uma rede associativa e militante de rara densidade, onde o combate pelo estatuto comunal da terra (o ejido) perdura há mais de século. No México, misturam-se, simultaneamente aos corporativismos oficiais (principalmente do partido-Estado, o PRI), a mobilização permanente e retórica da justiça social e diversas insurgências autênticas cuja repressão sangrenta permanece na memória coletiva: resistências urbanas no fim do século XX, como o Movimento Urbano Popular e as Assembleias de Bairro dos anos 1970-1980, estudantes maoistas estabelecidos no campo ou ainda autogestões municipais mais ou menos em ruptura. Assim, o “coquetel” zapatista é uma combinação da igualdade e da diferença; de uma herança comunista de base; e da promoção incansável da diversidade étnica, cultural, sexual – eixos ainda fortemente divergentes em movimentos de esquerda na Europa e América do Norte, onde o “movimentismo” mais ou menos identitário das minorias e o velho unitarismo social, mais ou menos universalista, continuam desconfiando um do outro.

UM JUMENTO CHAMADO INTERNET

A unidade zapatista, contudo, deve-se tanto a essa mistura heteróclita quanto à ideia de conjunto, ao estilo de luta, à forma de vida que é construída. Os traços caraterísticos desta última, que resumem o conceito cardinal de dignidade, aparecem não apenas nas explicações formuladas pelos indígenas, mas também em textos menos evidentes, de registros variados (panfletos, discursos, contos de fadas, canções, poesias).

São esses atributos que tornaram célebre o ex-subcomandante Marcos: modéstia, solenidade, orgulho resistente, determinação marcial, doçura nos gestos, relação de paciência e placidez com o tempo, admissão da utopia e também da fragilidade, lirismo cósmico de herança indígena e senso de humor, inclusive de si mesmo. É esse mesmo senso de humor que em outros tempos incitou Marcos a chamar seu jumento de “Internet”, para enviar em 1995 suas mensagens ao governo por esse meio de comunicação ancestral, ou ainda o EZLN a chamar de “força aérea do Exército Zapatista” as dezenas de aviõezinhos de papel com mensagens dissuasivas jogados nas trincheiras militares. Em resumo, é tanto Karl Marx quanto os irmãos comediantes de mesmo nome; é menos Che Guevara e mais o antropólogo engajado Pierre Clastres; menos Lenin que Ivan Illich; menos o dogma que o pragmatismo do combate; e menos a ditadura do proletariado e mais a tradição local do “realismo maravilhoso” (essa mistura de realismo social e estética mágica promovida pelo escritor cubano Alejo Carpentier) colocada a serviço da autonomia política. Marcos, antes de tornar-se Galeano, repetia que os melhores textos ocidentais de teoria política eram, para ele, Dom Quixote, de Cervantes; Macbeth, de Shakespeare; e os romances de Lewis Carroll.

Por trás da fórmula zapatista “abaixo e à esquerda” (desde abajo y a la izquierda), está a unidade de uma ímpar coerência ética e existencial. Se o zapatismo já foi visto como “a primeira utopia democrática universal que vem do Sul”,4 é em razão dessa reinvenção do fazer político, das formas de sentir e lutar. Mas é também porque sua vitória de longo prazo é a da persistência de uma luta de várias décadas, em que os inimigos e a pressão da realidade eram o maior motor da busca pela autonomia. Longa erradicação forçada, e não decretada, da tutela estatal: a autonomia negociada fracassou, enquanto a autonomia a se construir se impôs.

Formado clandestinamente em 1983, o EZLN ocupou as grandes cidades do estado de Chiapas no dia 1º de janeiro de 1994. Seguiram-se doze dias de combate e em seguida 23 anos de uma “antiguerrilha”, nas palavras de Yvon Le Bot.5 Após o cessar-fogo, um diálogo de paz foi mediado pelo bispo da diocese de Chiapas, Samuel Ruiz García, da catedral de San Cristóbal. O processo foi interrompido pela ofensiva militar de 1995, que precedeu uma longa e desgastante guerra empreendida por paramilitares bancados pelo governo. Chiapas se transformou no maior epicentro de movimentos sociais, inspirou a disseminação de um “zapatismo civil” primeiro em Oaxaca e depois no México todo, acolheu a Convenção Nacional Democrática de 1994 e diversos eventos e encontros internacionais e estimulou as esquerdas do país (que conquistaram a prefeitura da capital em 1997). Mas os assassinatos políticos foram muitos, e a paramilitarização se intensificou – culminando no massacre de 45 indígenas, em sua maioria mulheres e crianças, no acampamento de Acteal, no fim de 1997.

Entretanto, a aliança com a esquerda oficial, notadamente o Partido da Revolução Democrática (PRD) de Andrés Manuel López Obrador, acabou fracassando, e logo vieram a “distância e o divórcio”6 de 1999. Os acordos firmados em fevereiro de 1996 em San Andrés sobre os “direitos e culturas indígenas” (pela autogestão comunitária e o desenvolvimento autônomo) permaneceram letra morta, recusados pelo presidente Ernesto Zedillo e jamais incorporados à Constituição. A esperança renasceu em 2000, com a eleição de Vicente Fox, primeiro presidente não pertencente ao PRI. A imensa Marcha da Cor da Terra, de 2001, não foi suficiente para obter ganho de causa, apesar da intervenção diante do Congresso da comandante Ester. Nesse momento, também os zapatistas decidiram romper com o ciclo de negociações do mal gobierno (mau governo). Em agosto de 2003, lançaram em Oventic a construção da autonomia política criando os caracoles.

“A outra campanha”, espirituosa e amarga, levada adiante por Marcos em 2006, antes das eleições roubadas do PRD por uma fraude do PRI, isolou ainda mais os zapatistas, que construíam laboriosamente sua autonomia. O vazio de 2009-2012 alimentou rumores de um desentendimento maciço dentro do zapatismo e da morte de Marcos. Os zapatistas acabaram com o silêncio em 21 de dezembro de 2012, dia da mudança do ciclo do calendário maia, ocupando silenciosamente todas as cidades que tinham invadido em 1994. Esse silêncio “é o barulho do mundo deles que afunda, enquanto o nosso ressurge”, declarava o comunicado do EZLN. Assim inauguraram uma nova etapa da luta, com a constituição da rede informal Sexta, aberta a todas as lutas sociais do mundo, e a chegada do subcomandante Moisés, sucessor de Marcos/Galeano na liderança do EZLN. A história do zapatismo em Chiapas se define em três palavras, que resumem as modalidades de sua relação com o Estado: contra (durante doze dias de guerra), com (nove anos de tentativa de acordo) e, desde 2003, sem.

Foi no término desse itinerário, e no princípio da nova fase, que veio a decisão tomada no fim de 2016 pelo CNI, em acordo com as comunidades, de formar um Conselho Indígena de Governo. Sua representante (será uma mulher) deverá ser nomeada em 2017 e será também candidata às eleições presidenciais em 2018. Pouco compreendida e ainda em aprovação pelo comitê eleitoral federal, a decisão do CNI deixou alguns estupefatos e outros incomodados – dos defensores de uma secessão integral, que enxergam a decisão como uma submissão ao jogo eleitoral, à esquerda nacional com olhos no pleito, em particular o Movimento de Regeneração Nacional (Morena), de López Obrador, que se exasperou com as primeiras pesquisas atribuindo 20% das intenções de voto à candidata desconhecida, como se fosse mais um golpe do zapatismo contra a esquerda governamental do maior país hispanófono do mundo, mais uma desestabilização infringida pelo movimento ao longo do último quarto de século.

O sentido dessa decisão, contudo, é outro: “Não é pelo poder”, repete o CNI, e sim para afirmar a força de 56 etnias autóctones no México (16 milhões de habitantes, ou 14% da população) e, mais amplamente, de “todas as minorias”. A iniciativa visa tornar conhecida a opressão e sua resistência, encorajando por todo o país formas de organização autônoma. A iniciativa pretende espalhar o vírus da oposição ao capitalismo e ocupar o terreno do adversário para revelar a todos os “indígenas” do mundo seu estado de decomposição terminal, assim como a possibilidade atestada de viver sem ele.
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O contexto é a chave, em um país onde o tráfico de drogas (que movimenta US$ 50 bilhões) produziu, nos últimos anos, 200 mil mortos e 500 mil deslocados, e onde partidos e instituições permanecem amplamente corrompidos. O desprezo expresso pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deveria incitar, como espera o filósofo mexicano Enrique Dussel, “a recomeçar do zero, com um projeto de autonomia e descolonização dos espíritos que rompa com o eurocentrismo das elites”.7 A decisão de formar um Conselho Indígena de Governo e apresentar uma candidata foi justificada, no comunicado de 29 de outubro de 2016,8 por uma longa lista de lutas indígenas que atravessam o país (contra o Estado, multinacionais e o cartel da droga) – às quais o CNI se declara solidário, convocando-as para uma coordenação dos combates, para romper com o isolamento de cada uma delas. O essencial está nessa relação voluntária com o exterior, com as resistências não zapatistas, com as quais o diálogo é contínuo, mas a cooperação, intermitente, desde 1994.

Aos ocidentais que os visitam, aos membros da IV Internacional, aos movimentos dos quatro cantos do mundo cuja construção de autonomia se aproxima da experiência zapatista (os curdos da “29ª revolta”, os sul-africanos de Abahlali baseMjondolo (AbM) nas townships da Cidade do Cabo ou a internacional camponesa Via Campesina), os zapatistas sempre fizeram a seguinte pergunta: “¿Y tu, qué?” (E você, o que vai fazer?). É a mesma questão que agora fazem às resistências indígenas locais insurgentes em todos os estados do México, de Michoacán a Sonora, contra os conglomerados mineradores, as expropriações turísticas, as pilhagens dos narcos e o sequestro de estudantes. E também aos movimentos sociais nacionais que os acompanham, como as greves docentes de 2016 e as manifestações contra o aumento do preço da gasolina (gasolinazo), no início de 2017.



Se essa candidatura tem como objetivo colocar o zapatismo em cena e ampliar a rede das solidariedades ativas, é porque ainda há muitos obstáculos e inimigos tramando emboscadas – não à toa o Exército federal ainda tem algumas dezenas de postos ao redor das cinco zonas zapatistas. Os paramilitares continuam a semear o terror, como os enfrentamentos violentos em La Realidad, em maio de 2014, e depois em La Garrucha, em 2015. Os projetos das multinacionais são mais numerosos que nunca em Chiapas: o estado mais pobre do México, porém principal fornecedor de petróleo, café e energia elétrica, já cedeu quase 20% de sua superfície a concessões de mineração ou projetos turísticos. E nas próprias zonas zapatistas, onde convivem “bases de apoio” e não zapatistas, os subsídios de partidos, os “caciques” (latifundiários) que embolsam fortunas dos grupos mineradores aos quais cedem suas terras, representam ameaças cotidianas, diretas ou psicológicas, para comunidades com equilíbrio econômico e político precário – que se esforçam para não responder às provocações e precipitar uma operação militar.

Diante da barreira do caracol de Morelia, um grupo de partidistas se senta em círculo, bebendo cerveja e tequila ruidosamente de manhã para zombar dos zapatistas que chegam para as assembleias e tentar fazê-los se arrepender da “lei seca”. Contra o orgulho de ter construído a autonomia política, de ter retomado uma cultura e inventado um discurso de combate, de ter demonstrado ao mundo que não eram marionetes ou ventríloquos de Marcos, permanecem as provocações e os ataques morais, as tensões e ameaças, que continuam a pesar sobre a “Fragile Armada”,9 que no entanto, por enquanto, segue firme.

*François Cusset é autor de La Droitisation du monde [A direitização do mundo], Textuel, Paris, 2016.

1 Sobre a questão do cálculo e das fontes, cf. Bernard Duterme, “Zapatisme: la rébellion qui dure” [Zapatismo: a rebelião que dura], Alternatives Sud, v.21, n.2, Centre Tricontinental/Syllepse, Louvain-la-Neuve/Paris, fev. 2014.

2 Eduardo Galeano, Les Veines ouvertes de l’Amérique latine [As veias abertas da América Latina], Plon, Paris, 1971.

3 Citado em Guillaume Goutte, Tout pour tous! L’expérience zapatiste, une alternative concrète au capitalisme [Tudo para todos! A experiência zapatista, uma alternativa concreta ao capitalismo], Libertalia, Paris, 2014.

4 A expressão é do sociólogo mexicano Pablo González Casanova (La Jornada, México, 5 mar. 1997).

5 Yvon Le Bot, Le Rêve zapatiste [O sonho zapatista], Seuil, Paris, 1997.

6 Hélène Combes, Faire parti. Trajectoires de gauche au Mexique [Fazer parte. Trajetórias de esquerda no México], Karthala, Paris, 2011.

7 La Jornada, 16 jan. 2017.

8 “Que tremble la Terre jusque dans ses entrailles” [Que a terra trema até suas entranhas], Enlace Zapatista, 29 out. 2016. Disponível em: .

9 Título de um filme realizado in loco por Jacques Kebadian e Joani Hocquenghem, 2002.

Fonte: Le Monde Diplomatique

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Preciso e Exato

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O capitalismo quer acabar com a vida

Mel, que dura para sempre, arriscado pelas morte das abelhas

 9 DE AGOSTO DE 2017


Desenho antigo mostra um homem pendurado em um cipó e alcançando uma colmeia para coletar mel de abelhas selvagens.

Densidade, acidez e enzimas tornam imperecível o alimento — que a humanidade conhece há milênios e que ajudou a construir civilizações em todos os continentes

Na BBC

A imagem acima é de uma pintura rupestre, talvez a mais famosa, que ficava nas paredes de cavernas de Araña em Valência, na Espanha. Ela mostra uma pessoa pendurado em uma espécie de cipó, se esticando para alcançar uma colmeia e coletar mel de abelhas silvestres.

Estima-se que foi pintada há cerca de 8 mil anos, prova de que, ao menos desde então, nós nos arriscamos para conseguir essa delícia que as abelhas produzem com a ajuda das flores.

O sabor do mel, a segunda coisa mais doce que se encontra na natureza depois das tâmaras, encanta o ser humano desde que ele passou a ficar na posição ereta.

E o mais assustador é que, se o autor dessa pintura oito milênios atrás tivesse deixado um pote de mel no mesmo lugar, é muito provável que ele ainda estivesse bom para comer – no caso, o professor Jaime Garí Poch, que descobriu as cavernas onde estava a pintura no início do século 20, teria sido o agraciado com o pote.

Mas o que tem no mel para que se mantenha fresco por tanto tempo?

Em toda parte

Ao longo da história, a humanidade já se alimentou, se banhou e até se tratou com mel.

Em uma tábua de argila de Nippur, o centro religioso dos sumérios no Vale do rio Eufrates, que data aproximadamente do ano 2000 a.C., há uma receita escrita para cuidar de machucados desta forma: “Moer até que a areia do rio vire pó (faltam algumas palavras) e amassar com água e mel, azeite puro e óleo de cedro e colocar quente sobre a ferida”.

No Antigo Testamento, a terra de Israel é chamada “terra que corre leite e mel”. Depois, no Novo Testamento, conta-se que João Batista comia gafanhotos com mel silvestre.

O grande guerreiro cartaginês Aníbal deu ao seu exército mel e vinagre quando cruzaram os Alpes em elefantes para lutar contra Roma.


Ao longo da história, a humanidade já se alimentou, se banhou e até se tratou com mel

Para a medicina chinesa, o mel tem uma característica equilibrada (não é yin nem yang) e atua de acordo com os princípios do elemento Terra, entrando no pulmão, no baço e nos canais intestinais, segundo textos antigos.

Durante a dinastia Zhou Oriental (770-256 a.C.), um dos manjares reservados para a realeza era uma mistura de mel com larvas de abelha. Nas Poesias de Chu, uma antologia antiga (século 11 a.C-223 a.C.), se fala de vinho e mel.

E, no antigo Egito, os faraós partiam para outro mundo carregados de mel. Arqueólogos modernos encontraram uma vez ou outra nas antigas tumbas egípcias vasilhas de mel de milhares de anos que estavam perfeitamente conservadas.

São poucos os alimentos que sobrevivem com o passar do tempo. As batatas dessecadas dos incas são um exemplo, mas, diferentemente do mel, elas foram processadas. Se você encontra sal ou arroz seco em uma tumba antiga, no meio do nada, é provavel que você consiga utilizá-los para preparar um prato sem problemas.

Mas a diferença está aí: você precisará preparar algo. O mel guardado de maneira apropriada dura por um tempo indefinido, e, se você encontra um pote em uma tumba no meio do nada, supostamente pode se lambuzar com ele.

Como é possível?

A “magia” acontece por uma série de fatores que operam na mais perfeita harmonia.

O mel é um açúcar, e os açúcares são higroscópicos. Isso significa que eles têm pouca água, mas podem absorver a umidade se expostos a ela.


Para obter o néctar na célula da colméia, as abelhas desencadeiam o processo que fará com que o seja mel é anti-séptico

São raros os microorganismos que podem sobreviver em um ambiente assim. Para que algo estrague, é preciso haver algo que gere esse processo – mas o mel é um “hospedeiro” ruim para eles, então, costumam se manter longe dele. Ao mesmo tempo, o mel é extremamente ácido. Seu pH fica entre 3 e 4,5 (7 seria neutro), e essa acidez mata microorganismos.

Quando as abelhas fazem o mel, elas coletam com o néctar das flores e, depois, o regurgitam no favo. Ao fazer isso, há uma mistura com uma enzima que elas têm no estômago, a glicose oxidase.

O néctar se decompõe em ácido glucônico e peróxido de hidrogênio, a famosa água oxigenada, muitas vezes usada para limpar feridas por matar bactérias e que protege o mel de coisas que queiram “crescer” nele.

Assim, esse “tesouro dourado” é eterno por ser extremamente doce e ácido, o que impede que qualquer bicho sobreviva – além disso, tem um antiséptico natural.


O espantoso sumiço das abelhas

– 2 DE MARÇO DE 2013
Que inseticidas estão provocando, nos EUA e Europa, redução de até 50% no número de colmeias. Quais as consequências do fenômeno, que começa a atingir Brasil
Por Najar Tubino, em  Carta Maior
O nome científico é Desordem do Colapso das Colônias, traduzido do inglês. Um fenômeno que ganhou relevância nos Estados Unidos, particularmente na Califórnia, em 2006, quando milhões de colmeias desapareceram. O cálculo do sumiço em 27 estados era de 1,4 milhão de colmeias para um total de 2,5 milhões. As abelhas não morrem, elas somem. Não deixam rastro. É como no navio fantasma Maria Celeste, cuja tripulação sumiu em 1872, daí chegaram a apelidar o evento de “Maria Celeste”.
O problema aumentou quando o sumiço atingiu vários países da Europa, incluindo, Alemanha, França, Espanha, Portugal, Suíça, entre outros. Começaram a levantar as causas do problema. Das antenas de celulares, ao estresse de percorrer milhares de quilômetros transportando abelhas dentro de caminhões acompanhando as safras de várias culturas. Das 250 mil espécies de plantas com flores, 90% são polinizadas por animais, na maioria insetos, e na sua maioria abelhas – cálculo de 40 mil espécies no mundo, três mil no Brasil.
A polinização das plantas é obrigatória para a reprodução, enfim, garante a continuidade da espécie, a variedade genética e, principalmente, a produtividade. É o caso da maioria das culturas comerciais, como soja, milho, a maioria das frutas. Enfim, calculando em dinheiro o valor atinge US$200 bilhões no mundo inteiro, US$40 bilhões nos Estados Unidos. Em janeiro desse ano, as autoridades sanitárias da Europa (EFSA, que controla a segurança dos alimentos), determinaram que fossem submetidos a exames detalhados três inseticidas, da classe dos neonicotinoides (origem da nicotina), fabricados pela Bayer – clotidianidina e imidacloprida – e tiametoxan, da Syngenta.
Inseticidas suspeitos
A EFSA argumenta que os inseticidas por meio de resíduos na terra, no néctar e pólen são alto e grave risco para as abelhas na forma pelo qual são aplicados em cereais, algodão, canola, milho e girassol, entre outras plantas. O órgão regulador determinou a avaliação de risco muito mais abrangente para o caso das abelhas e introduziu um nível mais alto de atenção na interpretação dos estudos de campo, ressaltando que não tem dados para concluir que os inseticidas contribuem para o colapso das colônias. Mesmo assim países como Itália, França, Alemanha e Eslovênia proibiram ou suspenderam o uso dos venenos.
A Syngenta divulgou uma declaração de que “esse relatório não é digno da EFSA e seus cientistas”. Já a Bayer, que fatura 800 milhões de euros com os neonicotinoidas, informou que os produtos químicos não causam danos as abelhas se usados da maneira pela qual foram aprovados na Europa. Existem 18 casos relatados na literatura mundial de mortandade de abelhas, segundo os pesquisadores Maria Cecília de Lima e Sá de Alencar Rocha, em um amplo estudo publicado no ano passado pelo IBAMA, chamado “Efeitos dos Agrotóxicos sobre abelhas silvestres no Brasil”.
“O que diferencia essa ocorrência é que as chamadas escoteiras ou exploradoras não estão retornando às colmeias, mas deixando para trás a ninhada (abelhas jovens), a rainha e talvez um pequeno grupo de adultos, provocando o enfraquecimento da colônia. Além disso, não são encontradas abelhas mortas dentro do ninho, nem ao redor das colmeias”, registra o trabalho dos pesquisadores.
Mais interessante é que as colmeias não são saqueadas por outros insetos, como formigas ou besouros. Também é importante ressaltar que as abelhas, que existem há 60 milhões de anos, formam um sistema mutualista com os vegetais. Seguramente, é um dos sistemas mais importantes de suporte da vida no planeta. O físico Albert Einstein deu uma declaração há muitos anos, dizia o seguinte:
“No dia em que as abelhas desaparecerem do globo, o homem não terá mais do que quatro anos de vida”.
Um estudo da Escola de Saúde Pública de Harvard realizado em Wocester Country, Massachussets, com 20 colmeias, usando aplicação dos inseticidas citados, determinou que a partir da 23ª semana, 15 de 16 colmeias tinham desparecido. Usaram uma dosagem do inseticida menor do que a encontrada no ambiente. O Programa de Meio Ambiente da ONU (PNUMA) apresentou um relatório sobre o caso e 2011, também faz referência ao uso indiscriminado de agrotóxicos no mundo.

Circula com a seiva
Claro, o desmatamento também é outra causa. Nos últimos anos, mais de 100 milhões de hectares de floresta foram perdidos no mundo, se contar outros usos das terras, a agricultura avançou em quase 500 milhões de hectares. Dos 13,066 bilhões de hectares ela ocupa 38,3%. Mas também está mais do que evidente que o consumo de agrotóxicos aumentou muito mais do que a área expandida da agricultura.
Os neonicotinoides são considerados uma classe de inseticidas que agride menos o meio ambiente, comparado com os organofosforados, piretroides e carbamatos. Mas a função dele é matar insetos. Todos eles. Além disso, tem ação sistêmica, ou seja, ele se espalha pela planta e atinge a seiva e passa a percorrer todo o organismo. Outro ponto: os agricultores fazem tratamento das sementes com os inseticidas. Isso significa que, ao germinar, a planta já traz o veneno na seiva, contaminando o pólen e o néctar, alimento das abelhas e das suas crias.
No Brasil não existe avaliação sobre colapso ou contaminação de colmeias. Existem muitos casos registrados em vários estados, como o Piauí, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas e São Paulo. Todos ligados a produção de colmeias localizadas nas cercanias de áreas agrícolas, como soja, cana ou milho. O presidente da Federação Internacional de Apicultura, Gilles Ratia, diz que no Brasil em função do uso indiscriminado de agrotóxicos a perda das colônias atinge 5 a 6%, das cerca de dois milhões de colmeias consideradas, um número em torno de 350 mil apicultores. Esta é uma atividade da agricultura familiar no Brasil, e o grande crescimento ocorre no nordeste, onde a atividade cresceu 290% nos últimos anos. O Piauí é o segundo produtor nacional de mel, com quase cinco mil toneladas, atrás do RS, que produz quase oito mil toneladas. Os dados são do SEBRAE, de 2009.
Perde o rumo

Entretanto, nos países desenvolvidos a taxa de mortandade por contaminação de agrotóxicos alcança 40%, segundo Gilles Ratia.
A abelha “apis mellifera” é a espécie mais usada na polinização, principalmente das culturas comerciais. É um inseto social, que trabalha coletivamente e de forma organizada. É capaz de voar quase três quilômetros em volta da colônia. Ela avisa suas companheiras sobre o local onde está a fonte de alimentação, através de uma dança circular, e também por contato olfativo. Qualquer interferência nesse processo, ela perde a referência, não informa suas companheiras e, como está acontecendo agora, não memoriza o local da colmeia. Perde o rumo.
É conhecido internacionalmente o poder de fogo dos venenos usados nas plantações comerciais. O objetivo deles é atingir o sistema nervoso dos insetos. Por um motivo simples: eles foram fabricados para matar humanos, e o ponto central, era atingir o sistema nervoso. O sujeito contaminado entra em convulsão e morre rápido. O veneno penetra no espaço entre as células e acelera o processo, devido à transmissão contínua e descontrolada dos impulsos nervosos. O sistema nervoso central entra em colapso.
O Brasil que é o campeão no uso de agrotóxicos com mais de um milhão de toneladas de consumo, sem contar o que entra contrabandeado. Até a aprovação da lei que regulamenta o uso desses venenos em 1989, as indústrias registravam os produtos com uma facilidade enorme, inclusive muitos já proibidos nos países de origem das mesmas empresas, como Estados Unidos e Alemanha. Aliás, ainda durante a ditadura, quando ocorreu a ocupação do Centro-Oeste e parte da Amazônia existia um Plano Nacional de Defensivos Agrícolas. O agricultor que procurava crédito rural destinava 20% na compra de insumos técnicos, como fertilizantes, venenos e sementes industriais.
Flores em Nova Friburgo

Agora, há quase três anos a ANVISA tenta reavaliar 14 princípios ativos desses agrotóxicos. Conseguiu banir um (tricloform), e outro já proibido em vários países – metamidofós -, está para ser banido. Mas o SINDAG, que representa as maiores indústrias recorreu na justiça, e nove ainda estão impedidos de ser reavaliados. Incluindo o glifosato, que foi aprovado como um agrotóxico classe IV, de baixa toxicidade.
Para completar o caso do sumiço das abelhas, vou citar alguns dados do trabalho de mestrado em saúde pública da pesquisadora da Fiocruz, do Rio de Janeiro, Marina Favrin Gasparini, sobre trabalho rural e riscos socioambientais, na região de Nova Friburgo, onde aconteceu a tragédia conhecida, com o desmoronamento de parte da serra. Ela morou na região e fez a pesquisa, entrevistando muitos produtores, todos pequenos, propriedades em média de 1 a 12 hectares, após o acidente. A região serrana do Rio de Janeiro é o segundo maior polo produtor de flores do país, atrás de Holambra, em São Paulo. Também é um dos maiores na produção de hortigranjeiros, como tomate e couve-flor.
Tem um dos maiores índices de aplicação de agrotóxicos por área e por trabalhador, é cinco vezes maior que a média do Sudeste e 18 vezes a média do estado- 56,5kg por trabalhador rural/ano. Segundo levantamento da empresa de pesquisa agropecuária do Rio – PESAGRO -, dos 32 agrotóxicos mais usados, 17 sofrem restrições em outros países, oito já foram proibidos. “Elevados índices de contaminação ambiental e humana foram encontrados nessa região, como decorrência do uso intensivo destes agentes químicos”, registra a pesquisadora.
Rosa fluminense envenenada
Começando pelo deslizamento, dos 657 pontos vistoriados na região serrana pelo Ministério do Meio Ambiente, 92% já tinham sofrido algum tipo de alteração, somente 8% mantinham mata nativa original. A produção de flores iniciou em Nova Friburgo na década de 1950, por descendentes de suíços e alemães que ocuparam a região desde 1819. Mas ganhou forma depois dos anos 1970, quando a Holanda, maior produtor mundial de flores – 85% da Europa -, começou a implantar polos nos países latinos. Casualmente, logo depois que o livro de Rachel Carson sobre os efeitos dos venenos no ambiente e para a saúde humana foi publicado. A Holanda, se considerarmos o uso de agrotóxicos per capita e por área, é a campeã no uso.
As flores mais produzidas são de clima temperado – rosa, crisântemo e palma. Mas outras 30 variedades são produzidas. Também mudas de rosa. Com toda a beleza, a cultura da rosa é a que mais aplicações recebe. No mínimo, uma por semana, no verão, quando os insetos e fungos atacam mais, de duas a três aplicações por semana. Trata-se de uma produção familiar onde todos os membros da família estão expostos. Os produtores, em função do envolvimento intensivo na produção e comercialização, compram os produtos dos representantes da indústria ou das casas comerciais da cidade. Ganham em troca análise de solo baratinho, ou de graça.
Não reconhecem o risco de usar os agrotóxicos. Vários dos entrevistados sentiram problemas de contaminação, mas não chegam a registrar o caso. Procuram atendimento médico em último caso. É assim em todo lugar. A indústria além de fabricar o veneno, ainda joga no usuário o problema da contaminação. É sempre ele o culpado. Nova Friburgo é cortada por três rios e está integrada em duas zonas de conservação permanente- Macaé de Cima e o Parque Estadual Três Picos.
Pegando esse gancho, vou sugerir aos sambistas da Vila Isabel, que receberam R$3,5 milhões da BASF, para produzir o samba enredo campeão do carnaval carioca de 2013, que se inspirem em outro tema para 2014. Quem sabe: “a rosa fluminense envenenada”. A BASF comemorou como ninguém o campeonato do carnaval. O patrocínio “faz parte de uma estratégia maior da companhia em ações de valorização do produtor rural, conseguimos levar nossa mensagem a uma audiência enorme”, como declarou ao site da empresa, o vice-presidente da Unidade de Proteção de Cultivos, Maurício Russomano, como eles chamam a unidade que vende inseticidas, fungicidas e herbicidas, e faturou em 2011, 4,1 bilhões de euros. Ela é líder mundial na venda de “defensivos agrícolas”, como eles chamam os venenos.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

Um partido interessante

Frente Favela Brasil vai no fim do mês ao TSE para fazer o registro do novo partido


POR ANCELMO GOIS
09/08/2017 07:30


Fonte:  O GLOBO
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