Ao abrir evento que comemora os dez anos de existência da emissora Telesur, jornalista falou sobre comunicação e avanço da esquerda na região.
24/07/2015
Por Pedro Aguiar
Do Opera Mundi
O maior confronto enfrentado na América Latina atualmente é “a batalha midiática”, desde pelo menos o ano de 2002, quando a tentativa frustrada de derrubar Hugo Chávez na Venezuela deu início a um novo tipo de golpe de Estado, o “golpe midiático”, transferindo aos meios de comunicação privados o papel de partido político nas oposições aos governos da “guinada à esquerda”.
A avaliação foi feita pelo jornalista e professor Ignacio Ramonet, ex-editor do jornal
Le Monde Diplomatique, na palestra de abertura do congresso “Comunicação e Integração Latino-Americana”, realizado entre os dias 22 e 23 de julho em Quito, capital do Equador.
Organizado pelo Ciespal (Centro Internacional de Estudos Superiores da Comunicação para a América Latina), o evento comemora nesta sexta-feira (24/07) os dez anos de fundação da
Telesur, canal multinacional de televisão mantido por diversos governos da região. Fundada por iniciativa de Chávez três anos após o golpe fracassado, a emissora nasceu com o papel de promover uma alternativa na cobertura das notícias latino-americanas, feita por jornalistas e comunicadores da própria região.
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Ex-editor do 'Le Monde Diplomatique', Ignacio Ramone - Agência Andes (arquivo/2012) | |
“Nos últimos 15 anos, todos os governos progressistas que chegaram ao poder democraticamente na região vêm sendo mantidos por via eleitoral. Nenhum deles foi derrotado nas urnas. Por isso, a resistência à mudança vem sendo cada vez mais brutal, apelando para novos tipos de golpes, alguns com fachada judicial, parlamentar, e sempre com forte ajuda da mídia”, disse Ramonet, lembrando os casos do Paraguai, Honduras e investidas recentes na Argentina e no Brasil.
Ao lado de Ramonet, a presidente da empresa, Patricia Villegas, lembrou que as principais coberturas do canal até agora foram justamente em países que não participam do consórcio, como a campanha militar contra a guerrilha das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o golpe contra o presidente Manuel Zelaya, em Honduras, em 2009.
“Naquele momento, o mundo só pôde acompanhar o que acontecia em Honduras, minuto a minuto, graças ao sinal da Telesur. Porque as emissoras privadas globais ou não estavam lá, e as que estavam preferiam ignorar”, disse.
Para Ramonet, o grande mérito da Telesur ao longo dessa década foi oferecer “uma outra leitura” sobre os acontecimentos da América Latina e do mundo, fugindo das perspectivas de redes privadas como
CNN e
Fox News que, para ele, seguem praticamente a mesma linha.
“Estou convicto de que a CNN vai desaparecer, não por falta de capital, mas por falta de audiência”, previu Ramonet, falando por teleconferência desde Caracas para a plateia de jornalistas, intelectuais e estudantes reunida no auditório equatoriano. “A Telesur não tem concorrência. Esse é o sonho de qualquer canal. Porque as outras fazem mais ou menos a mesma coisa”.
'Convergência digital'
Segundo o jornalista — que é espanhol mas vive radicado na França desde 1972 —, a maior mudança na comunicação nos últimos dez anos foi a integração das várias plataformas, a chamada “convergência digital”: smartphones, tablets e computadores, que roubaram da televisão o posto de tela principal da mídia. E, se antes as inovações tecnológicas estouravam primeiro nas cidades ricas da Europa e dos EUA, aponta Ramonet, agora já são disseminadas simultaneamente nas grandes metrópoles da América Latina e de outras regiões em desenvolvimento.
“As novas plataformas abandonam a continuidade que obrigava o espectador a assistir tudo linearmente; agora ele pode ver o que quiser, na ordem que quiser. Os canais que se adaptarem melhor são os que têm mais chance de sobreviver”, aponta.
Patricia Villegas enfatizou que a adaptação às novas plataformas é uma de suas maiores preocupações da Telesur. “Não adianta fazer conteúdos-espelho, que se repetem de forma idêntica na TV, na web, no Facebook, no Twitter. Os conteúdos precisam ser complementares e diferentes, porque o público os consome de formas diferentes”, disse ela.
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Congresso de comunicação - Quito Foto: Divulgação/Ciespal | |
Além do décimo aniversário, completado nesta sexta-feira, dia 24 de julho, a Telesur celebra também um ano desde o início da produção de conteúdos em inglês. “Não estamos traduzindo informações, mas produzindo diretamente em inglês”, enfatizou Patricia Villegas. Segundo ela, a entrada na esfera anglófona sinaliza a intenção da empresa em ampliar sua presença global. Por enquanto restrita ao site e às redes sociais, a Telesur em inglês espera iniciar em breve transmissões também como canal de televisão, com sede em Quito.
Sul geopolítico
“Na América Latina, vários intelectuais e lideranças políticas têm o vício de só ver a relação regional com o 'gigante do norte', os Estados Unidos. Mas também é extremamente importante considerar nossa relação com a China, a África, o Oriente Médio. A Telesur tem a tarefa de transportar a missão progressista da América Latina para o resto do mundo”, disse Ramonet.
Justamente por isso, Villegas diz que o canal continua expandindo seu universo de pautas para outras regiões, como o ataque da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar ocidental) na Líbia, em 2011, e mais recentemente na crise financeira da Grécia, quando o canal enviou jornalistas para Atenas e investiu na cobertura ao vivo. “Às vezes perguntam aos nossos repórteres: 'O que vocês estão fazendo aqui?'. Estamos aqui porque a nossa ideia de 'sul' não é apenas geográfica, mas principalmente geopolítica. Enxergamos a informação como um serviço, e não como mercadoria”.
“Durante muito tempo na América Latina, o jornalismo era um privilégio das emissoras privadas, e as TVs públicas ficavam relegadas à programação educativa, cultural e folclórica. Daí a importância de investir em produzir informação numa tela pública. Não se trata de um monólogo do Estado, mas de dar voz também aos grupos comunitários, como indígenas e afrodescendentes, contra a folclorização dessas comunidades”, concluiu Patricia Villegas.
Da teoria à prática
A proposta do congresso em Quito é ser não apenas acadêmico, mas também proporcionar a troca de experiências práticas em jornalismo e gestão de mídia voltada para a integração regional, ambos sob uma perspectiva crítica. A ideia é que professores, intelectuais e estudantes de fato dialoguem com jornalistas, diretores de emissoras e agências de notícias e gestores públicos do setor.
“É fundamental a teoria que reflete sobre a prática para dar-lhe sentido e compreender melhor a realidade para fazer diferente”, comentou Ramonet.
O diretor do CIESPAL, o espanhol Francisco Sierra, lembrou na fala de abertura que a tentativa de descrédito sobre a Telesur e outras mídias públicas, assim como contra as iniciativas de regulação e democratização da mídia pelos governos da “guinada à esquerda”, lembra muito o ataque da mídia privada feito contra a campanha da Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (NOMIC) e o Relatório MacBride da Unesco (Órgão da ONU para Educação, Ciência e Cultura), entre os anos 70 e 80.
Ele recordou o legado do comunicólogo boliviano Luis Ramiro Beltrán, falecido na semana passada, que não apenas teorizou sobre a comunicação latino-americana, mas ajudou a promover fóruns e encontros internacionais para criar iniciativas práticas de alternativas midiáticas na região naquela mesma época.
Nos dois dias do evento, também estarão presentes outros nomes do pensamento crítico da região, como o argentino Atilio Borón, do Clacso (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais), e o colombiano Omar Rincón, do Ceper (Centro de Estudos de Jornalismo, em espanhol). Mais de 60 trabalhos acadêmicos foram inscritos para apresentação. Entre eles, o do geógrafo André Pasti, doutorando pela Universidade de São Paulo, que discutirá a trajetória das lutas pela democratização da comunicação no Brasil.
“É importantíssimo aprendermos e nos inspirarmos com os processos de democratização da comunicação em curso em outros países da América Latina. O congresso permite esse diálogo”, disse Pasti a
Opera Mundi.