Tudo indica que estamos diante de um segundo caso Amarildo. Na
madrugada do dia 17 de outubro, um jovem de 18 anos chamado Paulo
Roberto morreu na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro. A mãe e
outros jovens que testemunharam o ocorrido acusam os policiais da UPP de
tê-lo espancado até a morte. Avisada, a mãe correu para o local e
conseguiu ver os dois últimos suspiros do filho, que já chegou morto à
Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Exatamente como no caso Amarildo,
não só os policiais acusados, mas o comando da UPP e a Polícia Militar,
institucionalmente, negam.
Amparada no laudo inicial do Instituto Médico Legal (IML), que diz que
as lesões encontradas no corpo de Paulo Roberto não foram a causa da
morte do jovem, a corporação soltou imediatamente os PMs que haviam sido
postos em prisão administrativa. Também exatamente igual ao caso
Amarildo, a grande imprensa já se esforça para deslegitimar a denúncia
da família e a revolta da comunidade. Só que desta vez, com um grande
trunfo a seu favor: diferente de Amarildo, Paulo Roberto tinha várias
passagens pela polícia, estava solto pela justiça, mas, como se sabe,
embora não exista pena de morte neste país, faz parte do senso comum
confirmado pela grande mídia todos os dias que “bandido bom” é “bandido
morto”. Quando digo que “tudo indica”, me referindo à situação de
Manguinhos, quero dizer que, para a imprensa, essa é a condição
suficiente para se dar início a uma pauta jornalística.
Com exceção honrosa do jornal O Dia
– que, aliás, tem se destacado por um sério jornalismo também na
cobertura das manifestações – e do programa de Ricardo Boechat na Band
News, tudo que vi na grande imprensa sobre o caso do jovem de Manguinhos
foram montagens editoriais – inclusive com as técnicas mais simplistas –
para enfraquecer a denúncia. No telejornal da Globo, por exemplo,
primeiro foi apresentada a fala da mãe, denunciando, depois a da
polícia, respondendo. Nesse formato clássico de edição de matéria, que
todo jornalista conhece, não há tréplica e a história se conclui na
defesa. Mas, para encerrar com chave de ouro, na volta das imagens o
âncora termina de fato a matéria informando que o jovem tinha várias
passagens pela polícia. Você que não conhece Paulo Roberto nem sua
família, que só conhece favela pelas imagens de televisão e aprendeu a
respirar mais aliviado em saber que “aquela gente” está “pacificada”,
não terá dúvidas sobre o que pensar.
Maquiagem sensacionalista
Os dias seguintes, na cobertura em geral, foram ainda piores. Imagens
da revolta da comunidade contra os policiais, apedrejando a sede da UPP e
carros de polícia, tomaram conta dos jornais e telejornais, destacando
um “vandalismo” preto e pobre que aterroriza o senso comum, nubla o fato
(a notícia) original e naturaliza a repressão violenta.
Destaco também a chamada do G1, portal da Rede Globo, no dia 17 de
outubro: “Exame diz que agressão não causou morte de jovem em
Manguinhos, Rio”. O subtítulo é ainda mais preciso: “Laudo do IML indica
que socos não motivaram morte de Paulo Roberto. Família acusa PMs da
UPP de Manguinhos de espancar e matar jovem”. A notícia é a (não) causa
da morte; as lesões (agressão, socos) não viram pauta. Parece uma
anedota conhecida nos cursos de jornalismo, sobre um repórter que foi
cobrir a estreia de um espetáculo de circo e voltou de mãos vazias
dizendo que não teve matéria porque o circo pegou fogo. É uma pena que
agora não tenha graça nenhuma.
Prevenidos da experiência recente, identifica-se, aqui e ali, um
esforço de maquiar esse discurso pronto de naturalização. Um exemplo é a
matéria, do mesmo G1, que traz, no título, uma frase da mãe do jovem
morto: “Não é o primeiro filho que se enterra em Manguinhos”. A
concessão, no entanto, limita-se ao título, já que a matéria não traz
nenhuma apuração, nenhum dado, nenhum questionamento da polícia sobre a
grave denúncia que o título apresenta. Maquiagem sensacionalista, mais
uma vez.
“Sai da frente”
É a história que se repete. Aliás, é bom que não se esqueça que o
início da cobertura midiática sobre o caso Amarildo não tinha nada das
denúncias que hoje ajudam a vender jornais. Em
texto publicado neste Observatório, comento matéria do
Globo
em que o desaparecimento de Amarildo aparece como uma questão lateral,
como o motivo alegado pelos moradores da Rocinha para fazerem uma
passeata que causava transtornos no trânsito, esta, sim, a pauta do
jornal. Muito diferente do apelo sensacionalista (e falsamente
investigativo) das manchetes de hoje, a primeira frase da matéria
daquela época, antes de o assassinato se tornar inegável pelos fatos,
resumia a notícia que tinha importância: “Uma manifestação realizada
ontem na autoestrada Lagoa-Barra por moradores da Rocinha parou o
trânsito de bairros como Lagoa, Gávea e São Conrado, dificultando a
volta para casa de quem mora na Barra da Tijuca e arredores”. Agora, com
Paulo Roberto e Manguinhos, não é diferente.
No dia 19 de outubro, junto com cerca de 70 trabalhadores e estudantes
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição de ensino e pesquisa
localizada em Manguinhos, fomos em passeata até a favela no momento em
que ocorria o velório do jovem morto. Mas você não viu isso no
noticiário. Na véspera, o presidente da Fiocruz, numa
comitiva com integrantes
ainda do sindicato da instituição e outros pesquisadores e diretores,
foi à favela conversar com o comandante da UPP sobre o clima de terror
que se instalou na região após uma manifestação organizada pelos
moradores em protesto pela morte do rapaz e na qual uma jovem foi ferida
na perna – com bala de verdade. Mas você também não viu isso no
noticiário.
Uma equipe de reportagem do SBT já estava em Manguinhos quando
chegamos. Mas eles não se interessaram muito pelas denúncias que
diversas pessoas da comunidade faziam não só sobre a morte do jovem como
sobre a prática de violência que, segundo eles, caracterizaria a
política da UPP. Localizado em frente à sede da UPP, o repórter,
eufórico, orientou o cinegrafista a registrar o momento – que não durou
mais de cinco minutos – em que alguns poucos moradores, revoltados,
chutaram e jogaram pedras no container da UPP. Um manifestante – que ele
talvez não soubesse que era pesquisador da Fiocruz – se postou em
frente à câmera com o cartaz que segurava e perguntou por que ele não
mostrava aquilo, por que não se interessava pela reivindicação, por que
só queria filmar o breve momento em que a população reagiu. A resposta?
“Sai da frente, filho da puta”, seguida da afirmação de que ele não
precisava que ninguém lhe ensinasse o seu trabalho. Não precisava mesmo:
seu trabalho é mostrar imagens chocantes, sensacionalistas,
descontextualizadas, que sirvam a uma narrativa irreal, mas reafirmadora
do senso comum conservador e violento que legitima a matança de pobre
nesta cidade todos os dias (e neste estado, e neste país).
Claro
que ele tinha que filmar também a reação, que era parte da notícia,
mas, na forma e na narrativa, essa parte tem virado o todo.
Modelo de jornalismo e concepção de notícia
Mas é preciso entender que esse não é um fato isolado. Tal como a morte
de Amarildo – e, se se confirmar a versão da família e da comunidade,
também a de Paulo Roberto –, não pode ser atribuída apenas a policiais
isolados, agentes do mal em meio a uma bela política do bem, esse
comportamento jornalístico não é específico de um repórter sem ética ou
incompetente. Visto no que traz de generalidade, esse episódio tem muita
semelhança, por exemplo, com as discussões sobre a cobertura das
manifestações que têm tomado as ruas do país.
Quando os defensores de plantão da grande imprensa justificam que as
manchetes dos jornais sempre destaquem o quebra-quebra e não o
envolvimento da população com o protesto; quando colocam a culpa do
noticiário nos “vândalos” que, ao produzirem uma manifestação
não-pacífica, forçam uma abordagem negativa da mídia, estão
naturalizando uma concepção de notícia que, no limite, legitima
comportamentos desonestos como o desse repórter do SBT. Por esse
argumento, a revolta da população de Manguinhos, que se traduziu na
agressão física a coisas – um contêiner e um carro – por parte de meia
dúzia de moradores, equivale, como notícia, à morte e ao espancamento de
um menino.
Como já assinalado, merece destaque a séria postura do jornal
O Dia
que, no dia 19 de outubro, por exemplo, deu uma página sobre o tema,
com o título “PMs soltos, jovem enterrado”. Destaca-se a foto de um
menino apedrejando o carro da polícia, porque é claro que isso também é
notícia e não tem que ser escondido, mas a legenda vincula os fatos:
“Viatura tem vidros quebrados por pedras num acesso ao Complexo de
Manguinhos, ontem de tarde: moradores revelaram detalhes da morte”. E o
texto sobre aquilo que os outros jornais trataram como vandalismo
aparece num box, reduzido ao espaço e lugar que esse fato merece no
contexto mais geral da notícia. O título do box: “Revolta antes e depois
do sepultamento”.
Para que não fiquemos apenas na superfície de um denuncismo que
individualiza os atos, é preciso discutir o que de palpável existe nesse
processo, além do cinismo que alguns jornalistas da grande imprensa
desenvolveram e os óbvios interesses empresariais das corporações de
mídia. Para isso, é urgente que todos os movimentos sociais que hoje se
mobilizam nas ruas – e não apenas aqueles diretamente ligados à
democratização da comunicação – discutam o modelo de jornalismo e a
concepção de notícia que, de tão naturalizada, nos faz não estranhar que
cada fato noticiado na mídia se esgote nele mesmo. Isolando o fato –
objetivo, neutro, aquele que deve falar por si -, a compreensão
profissional de notícia cria obstáculos para associações e
contextualizações que remetam a um mínimo de totalidade.
Acomodados nesse modelo, muitos jornalistas da grande imprensa aceitam o
jogo da fragmentação sensacionalista – que, literalmente, se limita a
causar sensação. As grandes empresas jornalísticas, confortavelmente
acomodadas no lugar privilegiado de quem controla os principais canais
de informação da população brasileira, mantêm seus interesses
particulares promovendo essa concepção de notícia e de jornalismo como
se se tratasse de uma definição técnica e profissional. E nós,
jornalistas e leitores, aceitamos isso.
O policial gente boa
Vivemos de tal modo presos num modelo fragmentado de notícia que não é
nenhum constrangimento para esses veículos de comunicação ficarem no
meio do caminho da informação. Eles podem, exemplo, informar que durante
a tortura do pedreiro da Rocinha os policiais perguntavam sobre as
armas do tráfico sem concluir – informativamente – que isso obviamente
configura uma prática de “interrogatório” a serviço dos objetivos
anunciados da UPP e da política que eles representam – e não a
manifestação de um ódio pessoal de dez policiais. Como descolar isso da
própria política de segurança pública do Rio de Janeiro e dos seus
grandes coordenadores, José Mariano Beltrame e Sergio Cabral? Para o
jornalismo atual, é fácil, e o pior é que já nos acostumamos com ele.
No caso específico de Amarildo, seria “injusto” dizer que a associação
da violência policial com a política mais ampla de segurança não
apareceu em momento algum. No dia 5 de outubro, por exemplo, o
Globo
publicou matéria com o título “Beltrame: caso Amarildo não arranha
imagem das UPPs”. A matéria se referia a uma fala do secretário de
segurança do Rio de Janeiro durante evento numa escola pública. Conforme
registra o texto, entre outras coisas menos comprometedoras, Beltrame
defendeu que “o que nós temos hoje lá [na Rocinha] é muito melhor do que
havia no passado” e que “a polícia atuou lá como atua em qualquer lugar
da cidade. A morte de uma pessoa é muito difícil, mas antes a gente não
conseguia entregar uma intimação lá dentro”. Não sei se entendi bem,
mas parece que o secretário de segurança acha que ser torturado pela
polícia é melhor do que ser torturado pelo traficante. E que as pessoas
deveriam ficar felizes porque agora, além de serem torturadas e mortas,
elas podem receber nas suas casas intimação da própria polícia. É uma
pena que o jornalista do
Globo que fez a matéria não fosse dado a ironias.
Como o tema aparece num evento cujo protagonista é o secretário, e não
como uma pauta que questione a política de pacificação (mais universal) a
partir de um fato particular, o jornal não precisou ouvir o tão famoso
“outro lado”. Até, porque, convenhamos, nesse caso, é fácil acreditar
que não existe um outro lado. Tendo como pano de fundo a naturalização
de que para favelado só existe a escolha entre a arma do traficante e a
arma da polícia, a população residente dessas comunidades ‘pacificadas’ –
o outro lado esquecido – não é mais ouvida sobre a política que deveria
beneficiá-la. Essa mesma população foi destaque nas páginas dos jornais
quando se anunciou a instalação das primeiras UPPs, e havia uma forte
expectativa em relação aos seus benefícios.
Hoje, um balanço que apurasse as denúncias de morte e violência e
ouvisse – de verdade – moradores de diversos segmentos, diferentes
faixas etárias, inclusive aqueles ligados a movimentos sociais locais,
feito com a autonomia que a apuração jornalística deve ter e não a
partir da indicação da própria polícia, talvez apontasse avaliações
menos otimistas do que as belas fotos do policial gente boa jogando bola
com as crianças da favela. Pelo menos foi isso que eu e todos os outros
que estavam comigo ouvimos dos moradores de Manguinhos.
O atributo do embrutecimento
É curioso, por fim, notar que essa fragmentação sensacionalista da
notícia tem sempre um lado: o da ordem. Teria causado bastante sensação
também a imagem do rosto machucado de Paulo Roberto no velório ou do
círculo de crianças, pobres e pretas, que rodeavam o caixão numa
tristeza muda, quem sabe vendo o seu próprio destino projetado ali. Não
vi essas imagens no noticiário. E, para falar a verdade, também não vi
pessoalmente. Não tive coragem de entrar na sala onde o corpo estava
sendo velado. E o fato é que, como jornalista, eu deveria me envergonhar
disso.
Com esse relato facilito a vida dos defensores de plantão da grande
imprensa, que podem apontar a parcialidade da minha crítica, vítima de
um envolvimento emocional que não condiz com a objetividade necessária
da profissão. Dou-lhes razão e confesso outros crimes: chorei ouvindo o
depoimento da mãe do jovem morto; quis fugir correndo deste mundo quando
ouvi os gritos de revolta do irmão de Paulo Roberto, que quebrou o
pouco protocolo que havia com a sua indignação sentida; quando cheguei
em casa, quis que meu filho não dormisse aquela noite. De fato, não
estou preparada para o profissionalismo que essa grande imprensa requer.
E ainda bem.
Em situações de injustiça e opressão, essa objetividade travestida de
uma falsa imparcialidade, esse cinismo justificado pelo
profissionalismo, é sinônimo de desonestidade e conivência. Meu consolo,
como militante de uma outra comunicação e um outro modo de se produzir
notícia, é que esse não é um pré-requisito para ser jornalista; é apenas
o atributo necessário do embrutecimento, construído dia-a-dia, por um
tipo específico de imprensa: uma imprensa que não pega em armas, mas
que, no Brasil, ajuda a matar.
***
Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em Serviço Social
Fonte; OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA
O excelente texto acima reforça, em parte, a postagem de ontem do PAPIRO com o título, Onde está a Democracia ?
A velha imprensa comercial e seus tentáculos midiáticos que controlam a comunicação no Brasil, com sua suposta imparcialidade jornalistica, não apenas é aliada do modêlo de polícia atual, como faz campanha, através da maneira como veicula os fatos, para a consolidação de um estado policial que certamente irá protegê-la e criminalizará a população pobre.
Talvez esse caminho mídia-segurança pública projete para o futuro a privatização do sistema prisional, algo já existente nos EUA e altamente lucrativo.
Por lá, pobre e preto são em tese uma fonte de lucros, desde que enjaulados em presídios, e não é de se estranhar que a velha mídia brasileira, tão escancaradamente vira-latas, siga fielmente os valores , códigos, percepções e práticas da "América Livre e Democrática".
Por enquanto, prolifera a lógica midiática de que bandido bom é bandido morto, desde que o conceito de bandido seja definido e aplicado pelo consórcio imprensa, polícia e judiciário.
Isto posto, consegue-se no Brasil assim como em muitos outros paises do mundo, consolidar práticas de um estado de exceção através do exercício da democacria.
A polícia prende e mata "os criminosos" ,a imprensa "noticia" os fatos e o judiciário julga e sempre condena os " bandidos" que conseguiram sobreviver.
Claro, todos pobres e na maioria pretos.
Em um exercício de futuro, uma vez exterminados os presos, os pobres, pretos, mulheres, LGBT, comunistas, defensores dos direitos humanos, ambientalistas, e outros, a próxima vítima será a classe média.
Qualquer semelhança com o projeto de Hittler não é coincidência.