Reportagem do 'El País', deste domingo (28), faz o
que nenhum veículo do dispositivo conservador brasileiro cogitou:
entrevista o estudante de economia Thomas Herndon, de 28 anos; ele
ganhou fama mundial ao fulminar a credibilidade de dois centuriões da
ortodoxia fiscal, os economistas Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff.
Herndon prepara seu doutorado na Universidade de Massachusetts, nos EUA.
Reinhart e Rogoff são titãs de Harvard, ademais de egressos da alta cúpula do FMI.
Entre 2001 e 2003, Rogoff ocupou nada menos que o cargo de economista-chefe da instituição; Reinhart era sua assistente.
O grande mérito de Herndon foi agir diante dessa catedral ortodoxa com impiedosa independência intelectual.
Ele não aceitou como intocáveis as premissas que sustentavam o edifício teórico da dupla consagrada dentro e fora da academia.
A saber, que o endividamento público é intrinsecamente nefasto ao transitar na faixa dos 90% do PIB.
Há
exatamente três anos, os dois publicariam no ‘American Economic Review’
um ensaio ancorado na ‘comprovação’ estatística de que a ultrapassagem
dessa marca fatídica inviabilizaria o crescimento econômico.
Apenas
um parêntesis ilustrativo do peso material que tem as ideias: nesse
momento, os socialistas franceses se imolam em praça pública agarrados a
uma política de austeridade que visa exatamente reverter o
endividamento público, na marca dos 92% do PIB. (Leia a
reportagem de Eduardo Febbro, direto de Paris)
A maldição fiscal não é novidade na carreira do mago Rogoff.
Como
economista-chefe do FMI, ele já prescrevia a caldeirada de arrocho
& rabo de escorpião mesmo sem tê-la demonstrado ‘cientificamente’
ainda.
A genuflexão a essa receita foi inoculada em cérebros intelectuais, operacionais e midiáticos nos quatro cantos do planeta.
O
FMI, seus ‘rogoffs’ e aprendizes cuidaram de injetar cepas daquilo
que, no fundo, revestia de legitimidade os interesses rentistas
acantonados na dívida pública.
A agenda do desenvolvimento, propriamente dita, foi devastada por essa infecção contagiosa.
Seu efeito revelou-se tão ou mais devastador que a doença supostamente maligna que pretendia curar: o gasto público.
Herndon
passou os olhos nas estatísticas que comprovavam o anátema e não ficou
satisfeito. Solicitou as planilhas completas aos autores.
Quando as teve em mãos hesitou mais uma vez.
Havia
extrapolações de inconsistência óbvia; pior, dados que afrontavam a
premissa da austeridade haviam sido eliminados das séries finais.
As evidências eram fortes, mas peso da ideologia é maior ainda.
O
doutorando esfregou os olhos mais de uma vez na esperança de clarear a
visão embaralhada pelo cansaço. Pediu ajuda à noiva, uma socióloga
especialista em estatística.
Ela revisou as séries cuidadosamente. E confirmou: “Não creio que você esteja errado”.
O resto é sabido.
A
fraude macroeconômica mais estonteante da ultimas décadas, brinca a
reportagem, funcionou para o Estado do Bem Estar Social como as ‘armas
de destruição em massa” funcionariam para a invasão do Iraque por Bush.
Herndon
acha um pouco exagerada a comparação. Mas concorda com a essência da
analogia: ‘Porque estão adotando políticas a partir de premissas
falsas’, diz.
O coquetel de arrocho e premissas falsas, bem como seu personagem símbolo, a partir de agora, não são estranhos ao Brasil.
Kenneth Rogoff dirigia o FMI durante a disputa presidencial brasileira de 2002.
Em
setembro daquele ano, o Ibope divulgou uma pesquisa em que o então
candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, retomava a trajetória
ascendente.
Depois de um período com resultados negativos, Lula
ganhou mais dois pontos consolidando-se na liderança, com 41% das
intenções de voto.
O tucano José Serra, seu principal adversário,
cairia para 18%, um ponto a menos.Mas já se revelava um corisco no
quesito rejeição: 29%.
A pesquisa encomendada pela 'Globo' foi divulgada numa terça-feira, véspera da reunião anual do FMI, em Washington.
Na quarta e na quinta-feira seguintes choveriam raios, cobras, lagartos e escorpiões sobre o Brasil.
Autoridades do Fundo emitiriam previsões catastróficas e receitas sombrias para o futuro do país e de seus eleitores.
Tudo naturalmente escandido com a conhecida isenção dos veículos do dispositivo midiático conservador.
Na
'Folha', o então correspondente Marcio Aith, que viria a ser chefe de
imprensa de Serra na outra derrota tucana, em 2010, exercitava o seu
futuro com o dedo preso no gatilho: “Alternativa, agora, é mais arrocho,
diz FMI”. Em seguida ajustava o alvo: “Fundo elogia equipe econômica do
Brasil (a do PSDB) e rebaixa perspectiva de crescimento do país...”
('Folha de S. Paulo', 26-09-2002)
No ‘Estadão’, o quadro de avisos viria igualmente encharcado de ostensiva agressividade.
Com
o título “Ajuste no Brasil será feito com dor, diz FMI”, o texto era
temperado de vaticínios agourentos aspergidos por ninguém menos que o
rigoroso economista-chefe do organismo, Kenneth Rogoff.
As
sentenças de Rogoff seriam impressas e disseminadas, então, com a mesma
inquebrantável genuflexão do espírito que hoje acomete nossos
jornalistas especializados em lubrificar a terapia do choque de juros.
Tudo
devidamente chancelado pelo ‘rogoffismo’ local, vocalizado por sábios
tucanos e professor banqueiros, de conhecidos serviços prestados à
Nação.
Como diria Millôr Fernandes, se não é uma garantia, já é uma tradição.
Ela explica por que o estudante Thomas Herndon não tem o destaque merecido nos grandes diários nacionais.
Seria
o mesmo que Bush admitir que as armas de destruição em massa serviram
apenas de álibi para destruir o Iraque. E tomar de assalto os seus poços
de petróleo.
Leia, a seguir, trechos do 'Estadão', com as sugestivas advertências de Rogoff, na reta final das eleições de 2002.
“Ajuste no Brasil será feito com ‘dor’, diz FMI”
Estadão 25-09-2002
O
principal objetivo da política macroeconômica do Brasil, no médio
prazo, deve ser reduzir o endividamento público, disse nesta
quarta-feira o economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI),
Kenneth Rogoff, na coletiva que abriu a reunião anual do FMI e do Banco
Mundial.
Para quem conhece a linguagem sutil e diplomática do
Fundo, fica claro que um aviso está sendo dado ao próximo governo: se
não houver uma reversão significativa do sentimento negativo do mercado
em relação à solvência pública, o FMI deve brigar por um superávit
maior.
Rogoff foi até mais explícito na entrevista ao dizer que
um "programa fiscal forte" requer "um forte grau de consenso social e
político". Mais adiante, ele reformulou a expressão para "um alto grau
de consenso social e apoio político".
Rogoff afirmou que o
ajuste é particularmente difícil porque o grande endividamento faz com
que as taxas de juros sejam muito altas. E isto, por sua vez, cria a
necessidade de que o superávit primário (que exclui os gastos com juros)
seja ainda maior.
Em um importante documento divulgado nesta
quarta, o FMI deixa claro que encara o superávit primário de 3,75% do
Produto Interno Bruto (PIB), com o qual o Brasil está comprometido, como
um nível mínimo (que poderia ter de ser aumentado) nos próximos anos.
O
FMI também explicita que considera que o elemento político - a
incerteza sobre a continuidade da atual política de forte ajuste fiscal -
é uma das principais causas da turbulência no Brasil.
O FMI
deixou claro que considera que há um importante fator político na atual
turbulência no Brasil. Referindo ao aumento de 750 para 1.500 pontos do
risco-Brasil entre março e junho deste ano, a sessão sobre o Brasil da
Perspectiva diz que há várias razões, mas que "talvez, mais
fundamentalmente, os participantes do mercado começaram a focalizar a
sua atenção nas incertezas políticas associadas com a eleição
presidencial de outubro e as suas implicações para a atual política
econômica".
Mais adiante, referindo-se à piora da situação
brasileira a partir de junho, o texto diz que "os mercados ficaram cada
vez mais nervosos sobre o resultado das eleições e o que ele poderia
significar para a sustentabilidade das finanças públicas no Brasil,
especialmente em seguida às
pesquisas de intenção de voto no
início de julho". Esta foi a fase em que Luiz Inácio Lula da Silva e
Ciro Gomes lideravam a disputa. "Para aliviar estas preocupações",
conclui o relatório, "é crítico que se crie a confiança de que uma
política econômica apropriada vai permanecer depois das eleições".